14.10.09

Revista Aplauso - Edição 99


Hamlet

Wagner Moura vive o mais famoso personagem do teatro ocidental

A angústia de um homem em busca de vingança para o assassinato do pai e todos os questionamentos suscitados a partir da descoberta de uma verdade dolorosa fizeram de Hamlet o mais celebrado personagem da literatura ocidental, só superado em estudos ou citações, por Jesus Cristo. A tragédia de William Shakespeare chega ao palco do Oi Casa Grande estrelada – e produzida - por Wagner Moura, sob a direção de Aderbal Freire-Filho, depois de uma temporada de oito meses em São Paulo.

A nova montagem privilegiou uma aparente simplicidade. O palco é quase vazio, com poucos elementos cênicos. Para reduzir o tom impostado da representação, Aderbal fez uma nova tradução do texto – em parceria com Wagner Moura e com a professora de inglês Bárbara Harrington. O diretor e o ator falam aqui sobre a importância de Hamlet para o teatro de todos os tempos.




Aderbal Freire-Filho


O teatro vivo, a grandeza e a miséria da condição humana, a poesia, tudo está em Shakespeare. De um certo ponto de vista, todos os espetáculos, toda a vida de um artista de teatro é um caminho para Shakespeare, um caminho para alcançar a simplicidade do palco, sua poesia pura, e só assim poder mostrar a inesgotável representação do mundo das peças de Shakespeare.

Não são muitas as histórias e são infinitas as versões, as variações. A história de Ulisses, a de Jesus, a de Hamlet, a de Édipo, vamos contá-las sempre. Primeiro, ouvimos quando nos contavam. Depois vamos contá-las aos outros, assim anda a roda do mundo. Para as melhores histórias, todo tempo é o mesmo tempo.

Todo espetáculo de teatro feito a partir de um texto escrito é o resultado de uma co-autoria. E sempre uma parte dessa co-autoria é, obviamente, de autores vivos: os atores, diretor etc. Os vivos falam sempre do seu tempo, olham para o texto que encenam da perspectiva em que estão. Não vou fingir que sou um inglês da virada do século XVI para XVII para representar uma peça escrita nesse tempo. Nem Shakespeare fingiu que era um dinamarquês medieval para escrever sobre o tempo de Hamlet. Sou um brasileiro da virada do século XX para o XXI e é com as referências desse lugar e desse tempo que faço minha parceria com Shakespeare. Não gosto de chamar isso de inovar porque essa palavra pode ser traiçoeira, pode dar a entender que basta botar roupas de hoje e uns efeitos “modernosos” para ser atual e não é nada disso. Um espetáculo de jeans e camiseta pode ser velhíssimo e outro com roupas de época pode ser vivo, atual, novo. A vida, o presente, o novo não está só na aparência. As atrizes e os atores, esses sim, na maneira como atuam são vivos, isto é, presentes, isto é, novos. O espetáculo expõe essa vida.

Wagner Moura

Shakespeare é o melhor da época em que se fez o melhor teatro - a Europa, mais precisamente a Inglaterra da passagem do século XVI para o XVII. Hamlet é o que há de melhor em Shakespeare. Ali estão a compreensão extraordinária da natureza humana, a riqueza dos personagens, o domínio da narrativa, a poesia, o humor... Hamlet é o teatro da vida, a melhor peça já escrita.

A gênese desta montagem era a comunicação com o público. Hamlet foi um grande sucesso em 1600, não havia porque não sê-lo hoje também. A maioria das traduções paga tributo às portuguesas do século XIX, que pegavam o inglês elisabetano e traduziam para o português arcaico. Não há nenhuma razão para traduzir “go” por “ide”. Aderbal foi um mestre em passar o jogo de palavras do inglês shakespeariano para a nossa língua. Já acho até mais interessante montar Hamlet aqui do que nos paises falantes da língua inglesa, que não podem traduzi-lo.

A cada dia entendo mais o termo work in progress, que se aplica tão bem a qualquer trabalho em teatro, esse bicho vivo que se move. Hamlet é um personagem tão complexo, que pode ser feito de tantas formas... Duvido muito do crítico que vem com teorias acerca da psicologia de Hamlet (embora os psicólogos o amem). Stanislavski não se aplica a Shakespeare. Adoro pensar que o bardo antecipou Brecht. Hamlet não faria assim, Hamlet não agiria assado, Hamlet é deprê, Hamlet não pode rir, qualquer coisa que se diga é uma simpificação boba dos que querem dizer que conhecem bem Hamlet. Eu tenho convivido com ele e adorado conhecê-lo aos poucos, me surpreendendo a cada noite. Conhecê-lo e surprender-se com ele é conhecer-me e surpreender-me também comigo. Hamlet nos comporta a todos, todos somos Hamlet. Adoraria ter visto Paulo Autran fazendo o príncipe aos 80 anos. Daqui a quinze anos, vou retomá-lo e conhecendo-me, conhecê-lo mais um pouco. Puro work in progress...

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