17.9.10

Valor Econômico - Sociedade

Em busca de sintonia

Por Olga de Mello Para o Valor, do Rio

17/09/2010

Testemunha da história para uns, uma de suas protagonistas para outros, a televisão brasileira chega aos 60 anos neste fim de semana em meio a especulações quanto a seu futuro. Sua relevância ainda é incontestável como forma de entretenimento e instrumento de disseminação cultural – mesmo no momento em que a internet conquista um público ávido não apenas por novidades, mas pela escolha livre da programação. A perda da audiência para a rede, já registrada em pesquisas e acompanhada por especialistas, não assusta, no entanto, alguns homens de televisão, como o diretor J.B. de Oliveira, o Boninho, diretor da Rede Globo. À frente do “reality show” “Big Brother Brasil”, ele aposta na fidelidade do público, embora ressalte a necessidade de inovações constantes: “A audiência está ali, pronta para se ligar, para assistir. Inovar sempre é uma obrigação”.

As inovações já começaram a ser adotadas há tempo. Além de usar e abusar das redes sociais para divulgar a programação, a televisão cada vez mais sai de seus próprios limites, seja atingindo públicos fora das fronteiras domésticas, com seriados gerando filmes para a tela grande – como “Os Normais” e “A Grande Família” -, ou até invadindo a realidade do espectador por meio de perfis de personagens de telenovelas em blogs ou no Twitter.

“A nova forma da televisão é transmidiática. Já se pode comprar o brinco da personagem da novela pelo site da emissora que a transmite. E isso vem de processos iniciados na década de 1970, quando a teledramaturgia não se limitava a contar uma história, mas a direcionava para uma faixa de público específica, baseada em pesquisas mercadológicas”, diz Igor Nascimento, um dos organizadores do recém-lançado “História da Televisão Brasileira” (Editora Contexto), que analisa os aspectos social, político, econômico, cultural, tecnológico, profissional e estético, entre outras características próprias da televisão no Brasil.

A autonomia na escolha da programação, fenômeno que só faz crescer a partir da internet 2.0, permanece restrita a uma pequena faixa da população brasileira, os cerca de 14 milhões que têm computador em casa. “O que a internet e as novas mídias possibilitam é abalar a figura do editor, criando mecanismos mais explícitos de contestação do conteúdo e reduzindo a passividade da audiência. Todavia, isso não elimina a moderação do material produzido por esse novo espectador”, observa Marco Roxo, professor do departamento de estudos culturais e mídia do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, e também organizador de “História da Televisão Brasileira”.

Para Esther Hamburger, chefe do departamento de cinema, rádio e televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, a ânsia de inclusão digital é forte no Brasil, mesmo esbarrando na precariedade da infraestrutura da banda larga oferecida atualmente. “A televisão ficou jurássica para os adolescentes, que praticamente já nem mais a assistem, e está perdendo audiência para ela mesma, para os aparelhos desligados. A tendência é haver uma interação, já que vai aumentar muito ainda o espaço tomado pela internet, gerando uma mudança na relação das pessoas com a televisão”, observa Esther.

O público jovem não é uma preocupação específica de Boninho, que acredita na inventividade e na qualidade da programação para atrair espectadores de qualquer faixa etária. “A televisão é uma batalha diária de conquista. Será preciso pensar em qualidade, dar ao telespectador produtos inéditos, diferenciados. A pulverização das mídias será cada vez maior, vai ganhar quem tiver o melhor conteúdo. Na guerra pela audiência, muitas vezes as emissoras preferem popularizar, jogar o nível para baixo e isso é muito ruim. Nosso maior valor é o telespectador.”

Apesar do inegável avanço do computador no entretenimento do brasileiro, a pesquisa “The State of Media Democracy”, que ouviu, no Brasil, 1.346 pessoas que usam internet (ver quadro) identificou crescimento no número de assinantes de TV paga no país – um público menos passivo que o das gerações anteriores. A mudança de comportamento do espectador começou na década de 1990, quando o Brasil tomou contato com a internet, a TV por assinatura e os aparelhos de DVD.”

Naquele momento foram modificadas as relações complexas que haviam sido estabelecidas ao longo de 50 anos. A televisão continua fazendo parte da vida brasileira, mas de forma diferente. O público ganhou uma autonomia que não existia antes”, diz Esther Hamburger.

Por maior que seja o impacto da internet nas comunicações, o rompimento dos telespectadores com a televisão no Brasil está longe de acontecer, afirma Beatriz Becker, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesmo com um discurso elitista e tendo suas origens ligadas à necessidade de representação de uma classe urbana no país, a televisão brasileira seria o elemento agregador que permitiu a construção de identidade da nação, além de conceder visibilidade a uma população tradicionalmente excluída, acredita Beatriz.

“A televisão precisa escapar da visão de que é o depósito do lixo intelectual do mundo. O Brasil foi inovador na utilização da técnica de produção para massas, com projetos vanguardistas de estéticas renovadoras em narrativas televisivas, tanto na teledramaturgia, que levou a linguagem do teatro para a televisão, quanto na cobertura jornalística. A televisão brasileira pode reivindicar com propriedade seu papel como produto cultural, que tanto intervém quanto sofre influências da sociedade. É nessas interações que ela leva ao espectador a ideia de cultura brasileira”, diz Beatriz.

O país muda e a telenovela vai junto

A importância cultural da televisão brasileira foi minimizada por quem contribuiu para transformá-la no mais acessível instrumento de divulgação de tendências e formação de plateias do país. Para alguns estudiosos, a contradição de um meio popular com uma produção elitista está na formação de seus próprios quadros. “Em todo o mundo, a programação de televisão é voltada para as classes populares. Aqui, ela não menosprezou o espectador. Os autores que escreviam para a televisão eram, em boa parte, esquerdistas com ambições intelectuais. No entanto, foram necessários 30 anos para a TV deixar de ser branca e elitista”, afirma Esther Hamburger, autora de “O Brasil Antenado – A Sociedade da Telenovela” (Zahar).

É na teledramaturgia que a televisão brasileira tem seu principal produto cultural, que consolida o veículo como um empreendimento viável nas décadas de 1970 e 1980. Seus temas discutem a contemporaneidade, tratando do cotidiano de grupos como o Movimento dos Sem Terra e dos moradores das favelas, além de criar vínculos com espectadores que se reúnem para acompanhar o desenrolar de folhetins que podem abordar problemas sociais, desde “Beto Rockefeller”, em 1968, quanto apresentar um Brasil fora do eixo metropolitano, com “Pantanal”, em 1990.

“A telenovela é a verdadeira crônica de um país que procurava a modernidade. O ápice do gênero se dá em 1988, com ‘Vale Tudo’, de Gilberto Braga. As qualidades técnicas e artísticas haviam levado as novelas a conquistar um público heterogêneo, que só se dispersa depois da entrada da internet no Brasil. Talvez o didatismo das novelas de intervenção, que promovem campanhas para reduzir as exclusões, também tenha contribuído para esse afastamento dos espectadores”, diz Esther.

A relação entre espectadores e televisão já foi mais estreita. Na década de 1980, programas de auditório vespertinos, como o “Aqui e Agora” e “O Povo na TV”, dão voz aos problemas de uma população que se queixa do atendimento precário que recebe do poder público. “Muito se falou na exploração da miséria e no tom apelativo desses programas, que até hoje dominam o horário, com novos formatos, talvez um pouco menos dramáticos do que os originais”, diz Marcos Roxo, autor do artigo “A volta do ‘jornalismo cão’ na TV”, publicado no livro “História da Televisão no Brasil”. O rádio, que foi a primeira referência para a televisão brasileira dos primeiros tempos, quando locutores apresentavam os telejornais, serviu de modelo para essa programação destinada a camadas populares.

“Aos programas seguiu-se um intenso debate sobre os limites do sensacionalismo e o jornalismo investigativo. Falava-se em processo de mexicanização da TV brasileira, em circo na TV. Essa programação foi estratégica para a consolidação do SBT. Hoje, temos uma TV bem mais popular do que há 20 anos, com ‘reality shows’ e muitos programas de auditório”, observa Roxo.

A rendição ao popular foi lenta, mas constante. Nas décadas de 1960 e 70, a música que chegava à televisão era sofisticada, em festivais da canção que tinham Edu Lobo, Dori Caymmi, Tom Jobim e Chico Buarque entre os concorrentes, ou em programas como “O Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Eclética, a Record também abriu espaço para Roberto Carlos e os representantes da Jovem Guarda, enquanto a anárquica “Discoteca do Chacrinha”, na TV Globo, recebia figuras de proa do Tropicalismo, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os gêneros mais sofisticados da MPB atualmente só aparecem bissextamente na televisão ou são relegados a programas especiais em horários de pouca audiência, enquanto manifestações “das periferias” ganham cada vez mais espaço em emissoras como a Rede Globo, que também já veiculou a série “Cidade dos Homens”, sobre a vida de dois meninos em uma favela carioca.

“Depois do documentário ‘Notícias de Uma Guerra Particular’, de João Moreira Salles, em 1999, e principalmente após o sucesso do filme ‘Cidade de Deus’, de Fernando Meirelles, houve uma visibilidade da favela que a TV tinha se acostumado a apenas passar por cima. E o tratamento que essa realidade recebe na televisão é menos sensacionalista e espetacularizado do que no cinema. Isso reduz a discriminação social vinculada à violência”, afirma Esther Hamburger.

O distanciamento entre a televisão e a realidade brasileira era bem maior até os anos 1970. O telejornalismo era calcado no noticiário das agências internacionais. O mais conhecido dos telejornais, o “Repórter Esso”, pautava-se pelos temas de interesse do patrocinador, no caso a refinadora de petróleo americana Standard Oil.

“É com o ‘Jornal Nacional’ e a transmissão em rede que o Brasil se encontra como nação. As pequenas emissoras do interior tornam-se repetidoras das grandes redes, mas o telejornalismo começa a tomar outro rumo, mais ligado aos temas brasileiros. O conceito de rede não apenas consolida a produção para a TV, mas também integra o país”, diz Igor Nascimento, organizador de “História da Televisão no Brasil”. (OM)

Valor Econômico - Livros

Revisitando Bauman, crítico ácido da sociedade movida a endividamento

Olga de Mello, para o Valor, do Rio

24/08/2010


Que os conhecedores da obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman não esperem encontrar surpresas em "Vida a Crédito", uma compilação de suas entrevistas à jornalista mexicana Citlali Rovirosa-Madrazo. Estão ali as contundentes críticas ao capitalismo, ao incentivo ao crédito, que cria legiões de endividados, à volúpia pelo lucro do sistema bancário - ideias expostas em livros anteriores, com repetição até de exemplos já apresentados. À parte a ausência de novidades, "Vida a Crédito" reforça o pensamento lúcido de Bauman, que conclama à reflexão sobre o momento que o mundo atravessa, tratando da globalização econômica à massificação do pensamento - e, principalmente, da falta de comunicação que subsiste na era da informação.

Ao retomar temas desenvolvidos em toda sua bibliografia, entre eles o da transição da sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores (e que se transformou em uma sociedade de devedores), o professor emérito das Universidades de Leeds, na Inglaterra, e Varsóvia traça uma análise apaixonada do capitalismo, que, em seu entendimento, deixou de nutrir-se do trabalho mal remunerado, indo buscar meios de crescimento na especulação financeira. Para Bauman, o crédito é um vício que alimenta um sistema parasitário - o capitalismo - que só prejudica a saúde de quem depende dessa opção para consumir. No entanto, o estímulo à manutenção de dívidas criou ações diferenciadas, que apenam os bons pagadores. Como lembra o sociólogo, uma instituição financeira britânica recusou-se a renovar cartões de crédito para quem quitasse suas dívidas em dia.

"Vida a Crédito" aborda diferentes aspectos da sociedade contemporânea, como a concepção atual de Estado, a xenofobia, as guerras étnicas, a superpopulação e os problemas ambientais - que, no entender de Bauman, são minimizados por todos os governos e, consequentemente, por todos os povos. Todos os temas voltam-se para a exploração do capital sobre o homem, já que o Estado social, criado para promover os interesse vitais da sociedade de produtores, assegurando seu bom funcionamento, perdeu sua força para o capitalismo, que lucra com a especulação e não com o trabalho.

"Os pobres já não são vistos como os 'reservistas' da indústria e do exército, que devem ser mantidos em boa forma (...). Hoje, o gasto com os pobres não é um investimento racional. Eles são uma dependência perpétua, e não um recurso em potencial", diz Bauman, que vê crescer o preconceito contra a pobreza, expresso até na rotulação da categoria social, que classifica os pobres como "classes baixas".

Embora não acredite no fim do capitalismo, que sempre encontra maneiras de reinventar-se, Bauman declara não sofrer de "nostalgia do comunismo", que associa a "um atalho para o cemitério das liberdades e para a escravidão". Ele mantém, contudo, sua "crença na sabedoria e na humanidade da orientação socialista", que permite opor-se à "desigualdade, discriminação e negação da dignidade humana".

O capitalismo, afirma, não traz soluções para os problemas que cria, nem é um sistema que se autoequilibra ou se move pela mão invisível do mercado, sendo incapaz de dominar a instabilidade que produz. "A capacidade de autocorreção imputada ao capitalismo por economistas de sua corte se resume à destruição periódica de 'bolhas de sucesso', com explosões de falências e desemprego em massa, com um custo imenso para a vida."

Aos 84 anos, Bauman demonstra esperança e carinho em relação à geração Y, formada pelos que têm entre 11 e 28 anos (num dos conceitos que a definem). Nascidos em um ambiente saturado de informações eletrônicas, esses jovens mantêm relações distanciadas da família e dos amigos, embora as formas de comunicação tenham evoluído e sejam, talvez, mais valorizadas do que os laços afetivos, observa Bauman.

A falta de motivação da geração Y para estudar ou trabalhar viria do gradual afastamento do mundo real, o dos adultos. As relações sociais superficiais, baseadas em conhecimento virtual, contribuiriam para a dissociação da realidade. Observando que os pais da geração Y, que hoje têm entre 28 e 45 anos, também veem o trabalho como uma atividade maçante, necessária apenas para sustentar os prazeres da vida, Bauman pressente que a entrada no mercado profissional pode ser traumática para esses jovens - que acreditariam no bem-estar social e na inexistência da perspectiva de desemprego (em países europeus ou na América do Norte), além de possibilidades incontáveis de deixar atividades maçantes em busca de outras, mais prazerosas.

A imagem que retrata as expectativas da geração Y, para Bauman, está em uma cena de "O Diabo, Provavelmente", filme de Robert Bresson, lançado em 1977, em que não há personagens adultos e sua existência só é percebida quando os jovens protagonistas se reúnem em torno de uma geladeira cheia de alimentos fornecidos pelos pais.

"Nossos jovens aguardam por um rude despertar. Os países mais prósperos da Europa esperam que o desemprego em massa volte. (...)", lembra Bauman, observando que a recessão também reduzirá as possibilidades de sustentar lazer e consumo através do crédito.

Valor Econômico - Política

Política: Ao lançar “A Sombra do Ditador”, Heraldo Muñoz alerta que instituições débeis e apatia dos jovens ameaçam países da América do Sul.

Os perigos da democracia

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

13/08/2010

Na manhã de 11 de setembro de 1973, o hoje diplomata Heraldo Muñoz saiu de sua casa, em Santiago, disposto a lutar contra os militares que até o fim do dia teriam deposto o governo do presidente Salvador Allende. Suas recordações sobre os primeiros momentos do golpe militar abrem “A Sombra do Ditador – Memórias Políticas do Chile sob Pinochet” (Jorge Zahar, 396 págs., R$ 59,00), em que mescla o relato de experiências pessoais com a trajetória do país da época da ditadura à retomada democrática.

Ao longo de dois anos, ele trabalhou em pesquisas até chegar ao texto final, que espera servir para contribuir com a “história de nossos tempos”, uma época em que, a seu ver, as democracias latino-americanas não correm riscos, porém convivem com instituições débeis e a apatia da juventude.

“Não acredito na possibilidade de novos golpes na América do Sul, como nas décadas de 60 e 70. O problema hoje não são as eleições ou os golpes, mas a qualidade da democracia. Nossas democracias são fracas, com instituições débeis. Há ainda corrupção, apatia dos jovens, desigualdade no acesso ao poder e à riqueza. Aí estão os perigos da democracia, não na intervenção militar clássica”, disse Muñoz ao Valor.

Na fase inicial do regime militar no Chile, Heraldo Muñoz escapou diversas vezes de ser preso. Em uma delas, voltando de uma reunião secreta com um amigo, que lera poemas esquerdistas, foi parado por soldados. O amigo, rapidamente, comeu os papéis onde escrevera os poemas para, depois, de liberados pelos guardas, descobrir que engolira uma conta de luz que estava no bolso, junto com as poesias. Em outra ocasião, soldados reviraram a casa de uma vizinha, achando que era o endereço de Muñoz, que permanecia na sala, aguardando a prisão – que não chegou a ser efetivada. Convencido pela mulher, a americana Pamela, ele se mudou para os Estados Unidos, onde fez doutorado em relações internacionais e trabalhou como pesquisador.

Alternando períodos no Chile e nos Estados Unidos, ele voltou ao seu país para trabalhar com o candidato à Presidência Ricardo Lagos pela coalizão de centro-esquerda que sucedeu Augusto Pinochet. Depois da eleição de Lagos, ele foi embaixador do Chile no Brasil e, no governo de Michelle Bachelet, representou o país na Organização das Nações Unidas. Atualmente, Heraldo Muñoz é diretor regional do Programa de Desenvolvimento para a América Latina e Caribe da ONU (Pnud). Embora há quase 40 anos defendesse a necessidade da resistência armada à ditadura, hoje ele entende que a única maneira de derrubar um regime de exceção é por meio da estratégia pacífica. “No campo da violência, Pinochet sempre ganharia, porque poderia continuar com a tese de guerra interna. Ele foi derrotado no plebiscito de 1988, depois de uma mobilização social que debilitou a ditadura.”

A solução pacifista não exclui, no entanto, a punição de quem cometeu violências em nome de qualquer governo, afirma o diplomata. A comissão que investigou as prisões políticas durante a ditadura chilena, ouvindo 35.868 pessoas, identificou mais de mil centros de detenções criados pela Direção de Inteligência Nacional (Dina), a polícia secreta que liderou a repressão. Só no Estádio Nacional, cerca de 7 mil pessoas foram interrogadas e, a maioria delas, torturadas. Quase todas as 3.339 mulheres que depuseram perante a comissão contaram ter sofrido violência sexual.

“Não acredito em anistia ampla para torturadores”, diz Muñoz. “Nossa geração é de filhos da ditadura. Muitas mulheres torturadas receberam apoio psicológico, mas as feridas são profundas, dificilmente desaparecerão com o tempo. Estamos marcados pela história que nos tocou viver.”

A figura de Pinochet hoje está apagada do dia a dia dos chilenos, que não perdoaram o ditador, diz Muñoz ao pintar um retrato pouco elogioso do general, mesmo no período anterior à tomada do poder. Aluno medíocre no colégio militar, Pinochet subiu na carreira sem demonstrar brilhantismo. Professava abertamente a fé católica, mas “na prática era a antítese dos valores cristãos, perseguindo, reprimindo ou criticando duramente os representantes da Igreja que ousaram defender a causa democrática ou advogaram pelo respeito aos direitos humanos”, denuncia Muñoz, recordando que, na visita ao Chile nos anos 80, o papa João Paulo II foi ignorado pelo ditador. “Pinochet era mais pragmático do que crente religioso”, conclui o diplomata.

Atualmente Pinochet é mantido a distância até pelos políticos de direita, que tentam se esquivar do legado do regime militar. Nas eleições de 2009, o neto de ditador tentou eleger-se – e foi derrotado – ao Parlamento sem estar filiado a nenhum partido de direita, já que nenhuma agremiação queria estar vinculada a seu nome. Mesmo para os que não viveram os tempos de repressão, a ditadura continua um tema permanente, afirma Muñoz: “Pinochet foi esquecido, não perdoado. A polêmica por uma proposta de anistia ampla, incluindo aqueles que violaram os direitos humanos, foi rejeitada recentemente pelo presidente Piñera e pela maioria dos atores políticos e sociais chilenos”.

Além de sua visão particular sobre o golpe e a ditadura chilena, o diplomata recolheu documentos e depoimentos que atestam o apoio do governo americano a Pinochet até o assassinato, em Washington, de Orlando Letelier, ex-diplomata do governo Allende, em 1976. Planejado pela Dina, o atentado teria sido uma ação da Operação Condor, o acordo entre os governos da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, do Brasil, da Bolívia e do Chile para combater os comunistas em todos esses países e até internacionalmente.

Mesmo sem a complacência dos Estados Unidos – principalmente durante o governo Jimmy Carter -, a repressão continuou, enquanto o Chile crescia economicamente, baseado no modelo neoliberal. Muñoz reconhece que houve um empenho de Pinochet pela prosperidade, mas lembra que o avanço chileno ocorreu em plena democracia, quando políticas públicas de inclusão social se tornaram prioritárias: “O verdadeiro milagre chileno aconteceu na democracia, quando os resultados econômicos foram bem melhores do que na época de Pinochet, e com justiça social. Crescimento para todos, em liberdade, com sindicatos ativos, Parlamento fiscalizando, mobilização da sociedade civil, imprensa crítica, esse é o milagre chileno, crescimento econômico sustentável”.

O diplomata aposta no espírito de superação do povo chileno, que atualmente se recupera dos terremotos do primeiro semestre. “A reconstrução terá altos custos econômicos e é um processo muito lento. Há quem acredite até que o terremoto será, apesar da dor que provocou, um estímulo econômico para que o país saia mais rapidamente da crise mundial”, diz Muñoz, que elogia o progresso “espetacular” em termos econômicos e sociais do Brasil. “Talvez tenha chegado a hora de concretizar aquela frase sobre o Brasil ser o país do futuro. Acho que, efetivamente, ele já é.”

Valor Econômico - Comportamento

Dança: Livro da americana Barbara Ehrenreich analisa o desprezo e a repressão das elites às manifestações corporais de êxtase coletivo.

Alegria proscrita

Por Olga de Mello, do Rio, para o Valor

06/08/2010

O relato da evolução de um bloco carnavalesco pelas areias da praia de Copacabana foi a escolha da americana Barbara Ehrenreich para ilustrar a integração democrática de estranhos movidos apenas pelo júbilo coletivo proporcionado pela dança. “Não havia nenhum objetivo naquilo. (…) era apenas a chance, da qual precisamos cada vez mais neste mundo abarrotado, de reconhecer o milagre da nossa existência simultânea em algum tipo de celebração”, escreve em “Dançando nas Ruas – Uma História do Êxtase Coletivo” (Record, 378 págs., R$ 54,90), um estudo sobre a repressão que as manifestações de dança sofrem até hoje.

“Em algumas regiões do Hemisfério Norte, a manutenção da dança como expressão popular de alegria foi perdida, mas a luta continua, pois as pessoas estão sempre inventando ocasiões para festejar e dançar nas ruas”, acredita a escritora, que lamenta as poucas oportunidades que tem para dançar, hábito cultivado desde a juventude, nos anos 60. “Nunca fui uma grande dançarina, mas sempre tive imenso prazer em dançar”, contou ao Valor.


O relato da evolução de um bloco carnavalesco pelas areias da praia de Copacabana foi a escolha da americana Barbara Ehrenreich para ilustrar a integração democrática de estranhos movidos apenas pelo júbilo coletivo proporcionado pela dança. “Não havia nenhum objetivo naquilo. (…) era apenas a chance, da qual precisamos cada vez mais neste mundo abarrotado, de reconhecer o milagre da nossa existência simultânea em algum tipo de celebração”, escreve em “Dançando nas Ruas – Uma História do Êxtase Coletivo” (Record, 378 págs., R$ 54,90), um estudo sobre a repressão que as manifestações de dança sofrem até hoje.

“Em algumas regiões do Hemisfério Norte, a manutenção da dança como expressão popular de alegria foi perdida, mas a luta continua, pois as pessoas estão sempre inventando ocasiões para festejar e dançar nas ruas”, acredita a escritora, que lamenta as poucas oportunidades que tem para dançar, hábito cultivado desde a juventude, nos anos 60. “Nunca fui uma grande dançarina, mas sempre tive imenso prazer em dançar”, contou ao Valor.


Filha de um mineiro, ela estudou química e fez mestrado em física e doutorado em biologia antes de tornar-se jornalista e escritora. Articulista de importantes veículos feministas, como a revista “Ms”, Barbara é uma pesquisadora diletante de hábitos sociais, tendo trabalhado como garçonete e arrumadeira quando reunia material para o livro “Miséria à Americana” (Record), sobre os trabalhadores que vivem com baixos salários nos Estados Unidos. Seu último trabalho, “Bright-Sided – How the Relentless Promotion of Positive Thinking Has Undermined America”, ainda inédito no Brasil, trata da cultura do pensamento positivo em seu país e quanto a pressão para obter felicidade pode causar frustrações e mais estresse.

“Quando nos concentramos em alcançar o nebuloso objetivo da felicidade, uma noção abstrata, que envolve uma série de acontecimentos e realizações para ser mensurada, estamos nos esquecendo de buscar algo bem mais próximo, que é a alegria. Essa nossa preocupação com felicidade, ao menos nos Estados Unidos, reflete a diminuição das oportunidades para a alegria coletiva real experimentada por variedades de dança que vemos hoje nas ruas”, afirma.

Se hoje encontrar a felicidade é uma obsessão para os ocidentais, nem que seja à custa de medicamentos, a alegria desencadeada pela dança foi combatida severamente durante séculos. A repressão não era só religiosa, mas também dos colonizadores que invadiram os continentes americano e africano. Cientistas, como Charles Darwin, escritores, como Joseph Conrad, e navegadores, como James Cook, juntavam-se aos missionários que chegavam às colônias ao condenar as danças coletivas por seus aspectos sensuais, catárticos e desprovidos de sentido.

A Europa vivenciava, então, uma fase totalmente melancólica, com alto número de suicídios, após experimentar o controle da euforia das manifestações carnavalescas e festivas desde a Idade Média, proibindo o uso de máscaras e fantasias nas festas, embora danças de salão e apresentações de balé fossem admiradas pela aristocracia. Na virada para o século XX, quando os bailes já eram comuns a todas as classes sociais, a dança permanecia malvista até por vanguardistas, entre eles Sigmund Freud. “Como outras pessoas de sua classe, Freud demonstrava aversão a qualquer festa popular que envolvesse classes inferiores”, afirma Barbara, lembrando que a psicologia privilegia o universo do indivíduo.

Descrevendo os aspectos neurológicos que ativam os movimentos quando ouvimos música, como balançar o corpo e marcar o ritmo com pés, ela destaca os aspectos associativos da dança. Inscrições rupestres e pinturas medievais retratam esses momentos de encontro coletivo, quando o isolamento é rompido e os laços comunitários são reforçados. “Não há imagens nas cavernas de pessoas conversando, mas sempre envolvidas em atividades coletivas”, diz Barbara, que credita o preconceito contra a dança ao temor de sacerdotes, governantes e colonizadores com a identificação entre os membros do grupo, fortalecida pelos rituais que levavam ao que o sociólogo Emile Durkheim chamava de êxtase coletivo.

“Até recentemente, as religiões eram centradas em rituais dançantes, que envolviam máscaras, fantasias e festas. Algumas vezes, os fiéis entravam em transe por causa da dança, sentindo que haviam feito contato com divindades ou espíritos. Durkheim chegou a sugerir que a ideia de divindade se originou nesses rituais. Pelo que consegui perceber, a hostilidade em relação aos rituais que tinham dança está associada, na Antiguidade, à ascensão do militarismo. Essa é, provavelmente, a razão pela qual os hebreus antigos adotaram celebrações religiosas mais discretas e explica a repressão, em Roma, do culto a Dionísio, no século 1º”, diz.

Para a escritora, o desprezo pela dança evoluiu até os dias de hoje, embora as elites aos poucos deixem de lado a posição de espectadores para absorver alguns de seus aspectos em manifestações que também servem como válvulas de escape para o estresse diário, entre elas os esportes. “Houve trocas de posição entre as classes sociais e as etnias sobre quem tem o direito de se divertir. Em Trinidad, o Carnaval, originalmente, era uma festa apenas de brancos. Depois da emancipação dos escravos, tornou-se um evento dos negros, com tentativas de brancos de domesticá-lo e reincorporá-lo, no início do século XX. Isso também aconteceu com o rock nos Estados Unidos, que começou como uma música racial, dos negros. Ao ser interpretado por Elvis Presley e outros brancos, o rock se universalizou.”

As festas de Carnaval e eventos promovidos para multidões, como a Love Parade, ainda serão vistos com preconceito por muito tempo, acredita Barbara, mesmo que celebridades procurem aderir a eles, um fenômeno típico da era do espetáculo. Até a nobreza quer demonstrar apreço pelas manifestações populares, lembra a pesquisadora.

Na Copa do Mundo deste ano, artistas como os roqueiros Sting e Mick Jagger assistiram a partidas de futebol ao lado do ator Leonardo DiCaprio e dos príncipes ingleses Harry e William. A rainha da Espanha e o príncipe da Holanda acompanharam a final da tribuna de honra, torcendo discretamente.

Barbara não sabe se o comparecimento das elites aos acontecimentos esportivos seria genuína ou uma busca de aproximação para angariar popularidade e respeito das massas trabalhadores. Da mesma maneira, as elites ainda perceberiam as festas populares, entre elas o Carnaval, como espetáculos. “Lembro-me de haver lido que nos anos 70 os ricos que moravam no Rio deixavam a cidade para evitar o Carnaval.”

Valor Econômico - Livros

Sociedade: O psicólogo e especialista em inovação tecnológica Don Tapscott vê com grande otimismo a geração formada em tempos de democratização da informação.

A era da cidadania global

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

02/07/2010


Íntegros, francos, honestos, bem informados, inteligentes, solidários: assim são os integrantes da primeira geração que foi criada utilizando a internet, na visão do especialista em estratégia e inovação tecnológica Don Tapscott. Admirador confesso da nova era que surge com a democratização da informação e a comunicação imediata possibilitada pela web 2.0, Tapscott, que acaba de lançar no Brasil seu livro mais recente, “A Hora da Geração Digital”, acredita firmemente nos bons princípios desses jovens que desrespeitam direitos autorais, enquanto criticam a corrupção na política e os abusos cometidos contra a natureza.

“A integridade faz parte do DNA dessa geração, para a qual racismo e machismo, entre outros preconceitos, são inaceitáveis. A honestidade e franqueza na expressão de suas opiniões são naturais para eles, os primeiros a amadurecerem durante a era digital, com acesso ao conhecimento que desenvolveu espírito colaborador e pensamento inovador”, disse Tapscott em entrevista ao Valor.

Um pouco de imaturidade compõe o perfil desses jovens, que divulgam dados pessoais, vídeos e fotografias que podem comprometê-los profissionalmente no futuro, admite Tapscott. A permanência na casa dos pais é cada vez mais postergada, não por comodismo e sim em decorrência de dificuldades econômicas. “A taxa de desemprego entre jovens adultos no mundo inteiro é brutalmente alta”, diz o escritor canadense, cuja formação original é em psicologia.

Autor de 12 livros sobre comportamento e tecnologia, Don Tapscott não vê contradição entre honestidade e desrespeito aos direitos autorais por quem baixa material pela internet. Em seu livro, cita pesquisas que apontam que 77% dos jovens baixam filmes, músicas, softwares e jogos sem pagar, enquanto 72% das pessoas entre 18 e 29 anos que compartilham arquivos afirmam não se importar com os direitos autorais. Os criadores de conteúdo, afirma, devem buscar novos modelos de negócios, levando em conta a facilidade de cópia do material que produzem.

“A solução para restaurar a saúde econômica da indústria da música não está em vender músicas por US$ 1″, comenta. “Em vez de se apegar a tecnologias de distribuição do fim do século XX, como o disco digital e o arquivo baixado, o negócio da música deve entrar no século XXI. Esta é uma época de atrofia versus renovação, estagnação versus renascimento”, afirma o otimista Tapscott, que não acredita no egoísmo, descaso e apatia dos jovens de hoje, até pela interatividade ao se comunicar intensamente pela internet, diferentemente da geração do autor, que permanecia inerte em frente da televisão.

“Esta é a primeira geração de cidadãos globais, que exigem mais transparência e comprometimento dos políticos. Eles têm orientação global, acesso ao conhecimento, espírito colaborador e um pensamento inovador que minha geração inveja. Cresceram interagindo, organizando informações, não são receptores passivos da mídia.”

Para Tapscott, os entrevistados demonstraram que o compartilhamento de informações os levou a difundir um sentimento de solidariedade que experimentam desde os bancos escolares, quando começam a prestar trabalho voluntário.

O idealismo da juventude se volta para as questões ambientais e contra as discriminações. “Eles acreditam na justiça, na liberdade e na defesa das causas ambientais. Apesar das diferenças culturais, eles têm valores similares e entendem que o destino da humanidade está interconectado. A todo momento surgem novas oportunidades, enquanto jovens se apropriam das ferramentas da internet para se envolver mais em tornar o mundo próspero, justo e sustentável”, observa Tapscott.



Menos Marketing, mais consciência

Olga de Mello, para o Valor, do Rio


“Sustentabilidade e Geração de Valor”

David Zylberstajn e Clarissa Lins (org.). Campus/Elsevier. 240 págs., R$ 55,00

Pauta obrigatória para qualquer empresa nos dias de hoje, a sustentabilidade precisa ser encarada no Brasil por outros prismas além do marketing. Esse é um dos alertas lançados em “Sustentabilidade e Geração de Valor – A Transição para o Século XXI”. Organizado pelo ex-diretor da Agência Nacional de Petróleo David Zylbersztajn e pela economista Clarissa Lins, diretora-executiva da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), o livro reúne textos de Israel Klabin, Sérgio Abranches, Celso Lemme, Gesner Oliveira, Marcelo Morgado, José Luiz Alquéres, Jerson Kelman e Célia Rosemblum.

O livro surgiu da necessidade, não de esgotar o tema, esclarecem os organizadores, mas de impulsioná-lo como objeto de reflexão e ação que informem novos modelos de desenvolvimento. Embora reconheçam que os princípios de sustentabilidade integram os manuais de ética de boa parte das empresas brasileiras, os articulistas reclamam da demora em efetivar o que preconizam. Boa parte dos empresários no Brasil ainda não teria percebido que práticas de desenvolvimento sustentável agregam valor aos negócios – e não apenas pela visibilidade positiva que as companhias obtêm, mas pela economia real no reaproveitamento de recursos. No entanto, há bons exemplos de iniciativas que se destacam, como o do fabricante de bebidas que se preocupa em reduzir a água consumida por litro de produto final e a seguradora envolvida em projetos de educação para o trânsito, lembra o cientista político Sérgio Abranches. São cuidados da mesma feição dos adotados na produção do próprio livro, impresso em papel reciclado.

O empenho genuíno de alguns setores, como o de geração de energia, em minimizar o impacto de suas atividades sobre o ambiente e os reflexos na qualidade de vida das populações contrasta com o que o diretor do FBDS, Israel Klabin, classifica como a acomodação do empresariado brasileiro, que decorreria da “escassez de políticas públicas” na área ambiental. Para Klabin, o Brasil ignora a importância da agenda ambiental, mantendo modelos anacrônicos de desenvolvimento. Os pequenos avanços nesse campo estariam em uma nova atitude dos que integram no conceito de sustentabilidade a inclusão social, que, aos poucos, deixou de ser percebida como filantropia, acredita Klabin.

A urgência em adotar práticas sustentáveis é clamor encontrado em todos os textos, que, mesmo sem adotarem um tom alarmista, enfatizam que as mudanças climáticas já começaram, ameaçando não apenas a sobrevivência dos negócios, mas de todo o planeta. Segundo Sérgio Abranches, as empresas que mais rapidamente conseguirem eliminar o impacto de suas emissões de carbono no processo produtivo terão claras vantagens perante as concorrentes.

Além de exposições sobre experiência dos programas ambientais implantados pelo setor energético brasileiro por concessionárias de energia, como a Light, o livro traz análise minuciosa sobre um aspecto pouco contemplado fora do âmbito profissional – o papel da imprensa na abordagem da sustentabilidade. Célia Rosemblum, editora do Valor, observa em seu artigo que o assunto só conquistou espaço destacado nos noticiários por volta de 2006, (com o lançamento do documentário “Uma Verdade Inconveniente”, apresentado por Al Gore), quase 20 anos depois de ter sido considerado questão estratégica pela ONU. Ainda assim, o novo enfoque da sustentabilidade segue em ritmo mais lento “do que requerem os termômetros e as aparentemente insuperáveis desigualdades”, diz Célia. Como o assunto ainda não é consenso, ela acredita que cabe à mídia abordá-lo diariamente, sem limitar-se à função de “holofote”, buscando distinguir iniciativas sustentáveis – mas sem deixar-se levar por excesso de simpatia pela defesa da sustentabilidade.

Para Célia, a imprensa deve contribuir para a disseminação do conceito, de modo que se enriqueça o debate e a sociedade possa escolher os modelos que julgar mais adequados.

Cultura: A ABL passa por processo de modernização, entra em fase de comunhão com as artes mais populares e adere às inovações tecnológicas.

A academia sacode a poeira

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

18/06/2010

Na reta final da campanha por uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), há um mês, Martinho da Vila já perdera a conta de quantas regras do protocolo dos candidatos havia quebrado. “Uma delas era não dar entrevistas”, dizia Martinho, que nem chegava a acreditar em sua eleição para a cadeira 29, que tem como fundador Artur de Azevedo e acabou sendo ocupada pelo embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti. Convidado a participar da disputa pelo presidente da ABL, Marcos Vilaça, o sambista representaria a entrada de um artista popular na casa, interessada em integrar-se à sociedade.

“Gosto da academia, principalmente nestes últimos tempos, em que demonstra apreço pela diversidade cultural”, disse Martinho, lamentando apenas a resistência dos acadêmicos em aceitarem músicos entre os imortais: “Orestes Barbosa foi o único músico a tentar ingressar, mas perdeu. Não bastou ter escrito ‘Chão de Estrelas’ e ser muito popular”.

Apesar da crítica de Martinho, a composição da academia é eclética, reunindo políticos, diplomatas, jornalistas, professores, escritores, médicos e um cineasta. O estatuto permite o ingresso de qualquer brasileiro que tenha publicado um livro. Nem todos são conhecidos do público. O único acadêmico atual que pode competir – e até suplantar – em popularidade com os mestres do passado é Paulo Coelho, que já vendeu 135 milhões de exemplares de seus livros no mundo e fez letras para sucessos de Rita Lee e Raul Seixas. Coelho, que representaria a ascensão de uma forma literária mais popular, nem sempre é associado à casa, cuja imagem tradicional pouco combina com as obras nada convencionais de alguns acadêmicos – tanto pela temática quanto pela forma literária.

Aos que pensam que o namoro da ABL com manifestações populares seja recente, Vilaça garante que a prática sempre existiu. “A academia jamais esteve empoeirada. Agora, talvez, haja pouco mais de divulgação sobre essas atividades”, pondera Vilaça, articulador de homenagens aos técnicos Joel Santana (futebol), Bernardinho (vôlei), a Martinho da Vila e à escola de samba Vila Isabel. “A academia está ligada diretamente às ciências humanistas. Joel, Bernardinho, Martinho da Vila e Noel Rosa fazem parte de nosso patrimônio cultural, assim como a produção literária dos acadêmicos”, afirma Vilaça.

A escritora Nélida Piñon credita a Vilaça a maior parte dos esforços pela atual fase de comunhão com as artes populares. “Ele imprime à casa sua visão cosmopolita do Brasil, lembrando que ela reveste de representatividade o trabalho que faz pela coletividade.”

Em seu terceiro mandato – não consecutivo -, Vilaça determinou a dinamização do site da ABL, que hoje tem conta no Twitter, no qual lançou um concurso de microcontos. O vencedor entre cerca de 2,5 mil inscritos será anunciado no mês que vem. Mais do que revelar novos escritores com poder de concisão para criar tramas de, no máximo, 140 caracteres, o concurso – o primeiro proposto pela academia – pretende alcançar os jovens que passam boa parte de seu tempo livre navegando na internet.

Inovações tecnológicas não assustam os acadêmicos. Até o fim do ano, todos ganharão leitores digitais Kindle, maneira de familiarizá-los com mais um espaço de publicação. A academia deverá lançar parte da obra de Joaquim Nabuco em formato digital, dentro dos eventos em torno do seu centenário de morte.

O campo da ABL nunca se restringiu ao fomento à cultura. Durante o regime militar, por exemplo, a instituição encabeçava, ao lado da Associação Brasileira de Imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil, as então chamadas “entidades civis”, que referendavam qualquer manifestação pelo restabelecimento da ordem democrática.

“A academia nunca decepcionou a comunidade. A luta política do momento é pela inclusão cultural. A ABL é madrinha das bibliotecas recém-inauguradas no Morro de Cantagalo, em Ipanema, e em Manguinhos”, conta Vilaça, que se entusiasma com a possibilidade de atingir 3,5 milhões de leitores por dia – os passageiros de 8.600 ônibus que circulam pelas ruas do Rio. Proposto pelo sindicato das empresas de transportes municipais, a Rio Ônibus, o projeto Circulando Cultura foi abraçado pela academia, que fez a escolha de 400 textos de 172 escritores brasileiros que estarão em banners dentro dos veículos.

“Serão textos e poesias curtas, todos de autores mortos. Os vivos já estão na mídia”, informa Vilaça, que espera estender a iniciativa a outros meios de transporte. “As barcas que ligam o Rio a Paquetá podem receber frases de Joaquim Nabuco, que passou sua lua-de-mel na ilha”, diz Vilaça.

Por mais de três décadas, entre 1959 e 1993, a academia teve no comando o tenaz Austregésilo de Athayde, responsável pelo atual conforto material da entidade. Por sua insistência, o governo federal doou à ABL o terreno vizinho à sua sede. Lá foi erguido o Palácio Austregésilo de Athayde, edifício comercial de 27 andares, em um dos pontos mais valorizados do centro do Rio. É a principal fonte de renda da academia, instituição particular que concede aos imortais rendimentos mensais que podem ultrapassar R$ 20 mil (incluindo plano de saúde vitalício e passagens aéreas para os que vivem fora do Rio) sem contar com verbas públicas, mesmo cumprindo rigorosamente o dever autoimposto de zelar pelo idioma. O gramático Evanildo Bechara coordena a Comissão de Lexicologia e Lexicografia, que atualiza periodicamente o “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”. Atualmente na quinta edição, seus 381 mil verbetes podem ser consultados diretamente no site da ABL.

A disseminação de cultura, outra das funções que estão no estatuto da ABL, se dá por seminários, palestras, debates, concertos, sessões de cinema e teatro. As atividades são gratuitas e montadas pelos acadêmicos. Os assuntos não se limitam à literatura. Em ano de Copa do Mundo, o futebol foi o primeiro tema do ciclo Brasil, Brasis, que promove debates com especialistas sobre vários assuntos, sob coordenação de um acadêmico. Em julho, a discussão será sobre mudanças climáticas. Em agosto, telenovelas e literatura. Em setembro, será a vez de pensar a dança, com Carlinhos de Jesus, Deborah Colker e Antônio Nóbrega entre os debatedores. Em outubro, estará em pauta a mulher brasileira. Em novembro, Aldir Blanc, Carlos Didier, Ricardo Prado, Sérgio Cabral e Luiz Paulo Horta refletem sobre Noel Rosa. “Não somos exclusivistas. A maioria dos eventos é sobre letras e literatura, núcleo onde atuamos por prazer e dever, mas há espaço para manifestações em outros campos”, diz Vilaça.

A despeito da atual fase de busca de visibilidade da academia, ingressar na imortalidade requer campanha intensa. O mais novo imortal, o diplomata Cavalcanti – que concorreu com Martinho; o presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Muniz Sodré; e o ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau -, sabe que até o comportamento discreto exigido dos candidatos ficou no passado. Antes de ser eleito, o postulante à imortalidade, além das amizades, precisa demonstrar interesse em participar de todas as atividades da casa.

“Há muito que a academia deixou de ser o repouso do guerreiro. Hoje, ela é quase uma empresa, que promove debates, edita revistas, cuida do idioma, tem movimento constante em suas bibliotecas. A ABL acompanhou a mudança mundial sobre o conceito de cultura, que se tornou mais amplo, abrigando não só o pensamento erudito. Em outra época, era mais sofisticada, europeia, ligada à filosofia. Hoje é mais antropológica”, diz Cavalcanti.

Valor Econômico - Comportamento

Gentileza gera gentileza, já dizia o profeta

Olga de Mello, para o Valor, do Rio
11/06/2010

Na década de 80, o concreto cinzento de 56 pilastras do viaduto do Caju, na Zona Portuária do Rio, começou a ser coberto por inscrições em verde, amarelo, azul e branco. Bandeiras do Brasil acompanhavam as mensagens ali pintadas por José Daltrino, o ex-proprietário de uma transportadora de cargas, sob uma nova identidade, a do Profeta Gentileza, que conclamava seus leitores a retomar valores como a solidariedade e a delicadeza, abandonados, segundo ele, pela sociedade capitalista.

Hoje, “Gentileza gera gentileza”, a frase usada por Daltrino para abrir os apelos pacifistas, está estampada em camisetas. Seus painéis vêm sendo recuperados pela prefeitura carioca, com apoio de diversos patrocinadores. O empenho em restaurar a obra de Gentileza, que morreu em 2003, começou no fim dos anos 90, quando seu trabalho chamou a atenção de Leonardo Guelman, professor do departamento de artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). As passagens por hospitais psiquiátricos não impediram Gentileza de incorporar-se ao cenário da cidade, observa Guelman.

“Ele soube se apropriar do espaço público para escrever um livro urbano, disseminando a cultura da gentileza. Não carregava dinheiro e não aceitava esmolas. Ele não era apenas um maluco beleza, mas alguém lúcido e sereno, que refletia sobre a crise nas relações cotidianas a partir da cultura popular”, diz Guelman.

A cerca de 2 quilômetros do viaduto do Caju, os valores pregados por Gentileza têm sido difundidos entre jovens que nunca ouviram falar do Profeta. Eles participam das oficinas oferecidas no Galpão Aplauso, uma ONG que desenvolveu uma metodologia própria para “qualificação em relações humanas”, explica a economista Ivonette Albuquerque, à frente do projeto, que tem apoio da Petrobras e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Pelo Galpão já passaram mais de 4 mil moradores de 300 comunidades pobres do Rio, interessados nas oficinas de artes plásticas, malabarismo, teatro, dança, música, entre outras especialidades. O aprendizado não se limita ao desenvolvimento de habilidades.

“Nas primeiras turmas que formamos, seis anos atrás, percebemos a resistência dos meninos, extremamente introvertidos e desconfiados. Levamos, então, a questão afetiva para dentro das oficinas, reforçando valores de uma maneira bastante lúdica. Falamos em respeito à cidade, ao outro, ao patrimônio público, em postura, em disciplina. No trapézio, a 20 metros de altura, é preciso confiar no colega que vai lhe dar a mão. Quem vai subir ao palco exercita a generosidade ao sair de cena para o outro brilhar”, diz Ivonette.

O cartão de visita da ONG é a Cia Aplauso de Teatro, que já montou seis espetáculos, apresentados em teatros do Rio, no Nordeste e na Alemanha. Cerca de 80 de seus ex-integrantes hoje trabalham em televisão, cinema, teatro e circo. Quem não demonstra talento para atuação, dança ou artes plásticas pode ingressar nas oficinas de capacitação profissional para eletricistas, ladrilheiros, e as áreas de carpintaria, costura, adereços, grafite, áudio, iluminação, cenotecnia e serralheria/solda – uma das mais procuradas, pois forma quadros para os setores de petróleo e gás, siderurgia e construção civil.

“Alguns vão cursar universidade, outros só trabalham, mas todos têm demonstrado que incorporaram os valores aqui aprendidos. Recentemente, oito meninos contratados por uma empresa de alpinismo industrial recusaram a proposta de uma firma concorrente, que ofereceu a eles salários superiores. Alegaram que não virariam as costas a quem lhes dera a primeira oportunidade de emprego. Isso é ética”, relata Ivonette, enfatizando que não há variação social na falta de valores: “A ausência de polidez é comum a qualquer classe social. E isso faz muita diferença no mundo do trabalho”.

O afrouxamento no cumprimento de códigos de convivência preocupa os especialistas. Se a transgressão de normas é natural na juventude, existe também uma busca por limites que os pais de hoje não estabelecem por comodismo, diz a psicóloga Júnia Vilhena, coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Mesmo reconhecendo que a pressão do trabalho é intensa sobre os adultos de qualquer classe social, ela critica a falta de autoridade paterna.

“Os pais pobres temem o envolvimento dos filhos com bandidos, enquanto os ricos fecham os olhos para o descaso em relação ao restante da sociedade, mas todos eles acobertam as faltas e dificilmente vão repreender esses jovens. Mas quando um projeto social ou artístico exige que os jovens se submetam à disciplina, eles se adaptam às regras. Isso prova que educar não é tarefa para analista”, afirma Júnia.

Já que a família delegou à escola o ensino dessas normas, preparar jovens para o mercado de trabalho deve ser uma das funções dos professores desde o ensino médio, acredita Maria do Carmo Leite de Oliveira, do departamento de letras da PUC-Rio. Há 20 anos organizando cursos de comunicação interpressoal para executivos, Maria do Carmo acha que o momento é de derrubar mitos, como a necessidade de manter comportamentos agressivos para alcançar bons resultados profissionais.

“Os melhores líderes são os que motivam suas equipes empregando a cordialidade. Como os pais, por negligência ou falta de tempo, deixaram de lado a transmissão de valores aos filhos, cabe ao professor, então, ensinar respeito e consideração aos alunos. A maioria dos estudantes brasileiros vai trabalhar assim que acaba a vida escolar. Eles chegam ao ambiente profissional sem noções básicas de convivência, porque as famílias não têm mais tempo de ensinar esses códigos”, afirma Maria do Carmo.

O cuidado com o “deslumbramento” de quem “vira artista” é essencial para Gutti Fraga, que há 24 anos criou o Nós do Morro, um dos mais reconhecidos grupos de artes cênicas do País, com cursos de e para a formação em teatro, cinema e audiovisual. A sede do grupo, que hoje conta com 480 integrantes, é no morro do Vidigal. Os 30 mil habitantes cresceram entre dois bairros de classe média alta, o Leblon e São Conrado, na zona sul carioca. O contraste entre os condomínios elegantes da vizinhança e as condições precárias de vida na favela levaram Gutti a imaginar um projeto que permitisse àquela população conhecer a cultura que nem sequer consumia.

“Aqui vivemos arte, cidadania, solidariedade e disciplina. O projeto nasceu para dar sustentabilidade aos seus integrantes. Recebemos temos mais de mil candidatos para as 80 vagas que abrimos a cada ano. Muitos são filhos de ex-alunos, de homens e mulheres que desenvolveram uma outra ótica a respeito da arte e a consideram essencial na formação, na educação”, diz Gutti Fraga, que não se rende aos elogios e prêmios acumulados pelo grupo desde a participação de seus atores em diversas produções de televisão e no filme “Cidade de Deus”.

Valor Econômico - Livros

Também há uma crise existencial a ser enfrentada

por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

“Capitalismo Parasitário”

Zygmunt Bauman. Trad. de Eliana Aguiar. Zahar. 96 págs., R$ 19,00

“Diante da Crise”

Luc Ferry. Tradução de Karina Jannini. Difel. 128 págs., R$ 28,00

A reação a uma crise econômica se faz através da reconstrução de um sistema que já provou ser instável ou deve levar a reflexões sobre novas maneiras de produção e de reestruturação social, passando pelo trabalho e pela educação? Buscar novos rumos para a economia europeia – e para sua cultura – através da análise dos problemas mundiais desencadeados a partir do segundo semestre de 2008 é o que propõem em seus livros o filósofo francês Luc Ferry e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Críticos ferrenhos da cultura do consumo compulsivo, que em muito explica o desastre financeiro americano e, por consequência, a crise global, Ferry e Bauman estão mais preocupados com o vazio existencial das novas gerações do que com a imediata recuperação da economia. A base desse vazio, que privilegiou o consumidor em detrimento do cidadão, é a mesma que permitiu a reinvenção dos piores aspectos do capitalismo, substituindo a exploração dos trabalhadores pelo endividamento dos consumidores. No entanto, se Bauman e Ferry compartilham a virulência no ataque às estratégias das entidades bancárias – aliadas a veículos de comunicação que disseminam a cultura da satisfação imediata pela aquisição de bens que se mostram obsoletos antes de serem plenamente usufruídos -, cada um mantém uma visão particular sobre como enfrentar uma crise que não está circunscrita a aspectos econômicos.

Aos 84 anos, professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia, Bauman acredita que o capitalismo encontrará novas formas de sobrevivência, alimentando-se, como um parasita, de quem o hospeda ou sustenta. A atual contração do crédito, afirma, “fruto do sucesso extraordinário dos bancos em transformar os correntistas em uma raça de devedores eternos”, não significa o fim do sistema, mas “a exaustão de mais um pasto”. A saída do sistema está na máquina estatal, com a utilização de recursos públicos, “já que o poder de sedução do mercado está momentaneamente abalado”.

A indignação de Bauman é direcionada também aos esforços dos agentes financeiros em convencer jovens a contrair empréstimos antes mesmo de iniciarem suas carreiras profissionais. Ao disseminar a noção de que o consumo é o meio para alcançar a felicidade, o sistema bancário internacional garante que as dívidas se eternizem em amortizações infindáveis.

“Ainda não começamos a pensar seriamente na sustentabilidade dessa sociedade alimentada pelo consumo e pelo crédito. (…) As fontes de lucro do capitalismo se deslocaram da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores”, alerta Bauman em “Capitalismo Parasitário”, no qual aponta a volúpia dos serviços de marketing em conquistar os poupadores que rejeitam o parcelamento de suas compras. Para assegurar a fidelidade dos devedores ao consumo compulsivo existe o crédito, que pode criar dependência maior do que drogas tranquilizantes, afirma o sociólogo.

Mais comedido em seus exemplos, embora também contundente na objeção à cultura do endividamento, Ferry preocupa-se em identificar a crise como econômica, gerada no enfraquecimento das classes médias – uma decorrência da globalização. Um momento-chave para o crescimento do capitalismo passar a depender do endividamento “das famílias mais numerosas e menos ricas”. Ex-ministro da Educação da França entre 2002 e 2004, Ferry, de 59 anos, hoje preside o Conselho de Análise da Sociedade, órgão governamental para o qual, no ano passado, ele escreveu o relatório “Diante da Crise – Materiais para uma Política de Civilização”. O documento não se limita a discutir as causas do colapso financeiro mundial, mas pretende aproveitar a crise como “uma oportunidade para abrir os olhos”, pois, segundo Ferry, “é intrinsecamente insatisfatória uma sociedade que parece atribuir à vida humana, como único horizonte de sentido, o ‘cada vez mais’ .(…) Cria frustrações irremediáveis”.

Otimista, Ferry acredita que a compulsão consumista possa ser abafada com o fortalecimento de valores humanitários. Isso, porque, se não existe mais mobilização em torno da defesa de religiões, nações ou políticas/revoluções, dentro de um contexto europeu, os filhos ou até “pessoas próximas, família ou amigos” ainda são motivo suficiente para levar alguém a correr riscos, a entrar em batalhas. Depois das mudanças céleres experimentadas a partir do século XX, chegamos a uma época de solidariedade afetiva, a era de um novo humanismo, afirma Ferry.

Publicados antes da recente crise da Grécia, os dois livros trazem a advertência dos autores sobre a probabilidade de problemas econômicos estarem à espreita dos jovens que não se prepararam para substituir os atuais adultos. O desinteresse desses jovens em receber tal treinamento viria da superficialidade de um mundo em que sobram informações, mas a formação é escassa. “A arte de viver num mundo hipersaturado de informações ainda não foi compreendida”, observa Bauman.

O estranhamento das gerações, para Ferry, pode e precisa ser combatido. Desse afastamento teria surgido a erosão das tradições, “calamitosa em alguns níveis, sobretudo na escola”, que é traduzida pelo “aumento da incivilidade”. Sem perder o entusiasmo, Ferry aposta em um amplo programa educacional, que divulgue obras filosóficas, literárias e cinematográficas e, assim, desperte a atenção dos estudantes para a ética de uma vida menos materialista.