19.1.07

Valor Econômico - Literatura

A vez do relato confessional

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

Eles se drogaram, se prostituíram, enfrentaram guerras, aprenderam a conviver com doenças crônicas, sofreram com a perseguição política, tiveram de construir seus caminhos pelo mundo contra tudo e todos. No fim, venceram perdas pessoais e materiais, e decidiram contar suas experiências em narrativas que acabaram pejorativamente rotuladas – pelos críticos literários britânicos e norte-americanos - como “misery books”. Desgraças à parte, este é um dos gêneros mais bem sucedidos no mercado editorial internacional desde a publicação do “Diário de Anne Frank”, em 1947.
Enquanto os críticos torcem o nariz para a maioria dos títulos, o público mostra-se ávido em conhecer os esqueletos que autores guardam em seus armários. A impessoalidade na forma como a imprensa trata a realidade é um dos fatores que levou ao aumento da demanda por este tipo de livro, acredita o editor de não-ficção da Nova Fronteira, Luciano Trigo: “O leitor sente falta de relatos que dêem conta da dimensão humana das coisas, sente falta de reflexão, de profundidade e de sentimentos”. Para Jorge Oaquim, editor da Intrínseca, a tendência do “misery book” ainda não chegou ao Brasil, mas abriu espaço apenas para a literatura confessional de qualidade. “A chamada mis-lit (de misery literature) é uma verdadeira febre na Inglaterra, com histórias sobre infâncias terríveis e a lição de quem deu a volta por cima”, diz Jorge, que publicou “Ei, professor”, de Frank McCourt, o americano de origem irlandesa que recebeu um Pulitzer em1997 por “As Cinzas de Angela”, em que relembrava a sofrida história de sua família durante os anos 30. Em “Ei, professor”, McCourt fala sobre sua experiência no ensino público em Nova York na década de 50.
O tom realista no livro-depoimento está tanto em Anne Frank – que, apesar de investigações diversas por suspeitas quanto à autenticidade do texto vendeu 25 milhões de exemplares no mundo inteiro – quanto em “Quarto de Despejo”, os diários de Carolina Maria de Jesus sobre seu cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo, publicado na década de 60. Nos anos 70, as atribulações de jovem alemã, Christiane Felcherinow foram compiladas em “Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída”, que freqüentou listas de best sellers e mostrou o cotidiano sombrio de um grupo de adolescentes de Berlim. Agruras juvenis conquistaram o Brasil na década de 80: em “Feliz Ano Velho”, Marcelo Rubens Paiva contava como um acidente levou-o a ficar paraplégico. Em “Com Licença que eu vou à luta”, Eliane Maciel tratava dos conflitos que tivera com os pais até sair de casa, ainda adolescente.
A publicação dessas memórias precoces levou à profissionalização de Marcelo Rubens Paiva e de Eliane Maciel como escritores. O mesmo caminho foi seguido por Valéria Piassa Polizzi, que lançou “Depois daquela Viagem” (Ática) em 1994, em que falava sobre como se tornara soropositiva na adolescência. O livro de estréia do americano William S. Burroughs também foi confessional. “Junky”, de 1953, traz um relato seco sobre sua convivência com diferentes tipos de drogas pesadas. Burroughs, que jamais escondeu seu fascínio pelas drogas, conclui “Junky” declarando que estava de partida para a Amazônia, onde iria conhecer o Yagé – o alucinógeno Ayuasca. A frieza na abordagem do universo dos drogados de Burroughs é semelhante ao depoimento de Fred Pinheiro a Ivan Sant’Anna em “Bicho Solto”(Objetiva). “A história é muito pesada, mas sei de pais que recomendam sua leitura a filhos adolescentes”, diz Ivan Sant’Anna. A produtora musical Bel Marcondes, que conta como se livrou da dependência química em “Estou Viva, Não uso mais Drogas” (Geração Editorial), tem feito palestras sobre o tema no País inteiro. “Esses livros vão de encontro ao desejo do público de conhecer quem superou seus problemas”, afirma Luis Fernando Emediato, diretor da Geração Editorial.
Escritores consagrados também fazem, vez por outra, incursões na literatura confessional. Em 1990, o respeitadíssimo William Styron publicou “Perto das Trevas” (Rocco), um ensaio sobre a depressão a partir de sua própria experiência com a doença. Pesquisa semelhante fez a jornalista carioca Marina W, autora de “Não sou uma só: Diário de uma bipolar”(Nova Fronteira), que pretende desmistificar a doença com o livro. “Quis vencer meu próprio preconceito ao assumir que sofro de transtorno bipolar. A doença é grave, mas ninguém precisa se envergonhar dela”, diz Marina.
As tradições culturais de países asiáticos ou africanos atualmente rendem relatos comoventes, como o da senegalesa Khady Koita, dirigente de uma instituição de prevenção às mutilações femininas praticadas em diversos locais da África. Em “Mutilada” (Rocco), Khady fala como sofreu a chamada circuncisão feminina aos 7 anos, reconhecendo que demorou cerca de vinte anos até revoltar-se contra a prática, rompendo com a costumes de submissão das mulheres em seu meio. Uma trajetória semelhante à da afegã Masuda Sultan, que em “Uma Guerra Particular” (Nova Fronteira) recorda como conseguiu libertar-se de um casamento arranjado por sua família muçulmana. A guerra real é um tema recorrente na literatura confessional. A luta de judeus que conseguiram manter-se fora dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial estão em “O Pianista” (Record), de Wladyslaw Szpilman, e “Inverno na Manhã” (Zahar), de Janina Bauman, que, como Szpillman, viveu no Gueto de Varsóvia. Do outro lado está o intrigante depoimento de Rochus Misch, em “Eu fui guarda-costas de Hitler” (Objetiva), que disse ter passado a guerra inteira sem dar um só tiro. Em 1993, a uma nova Anne Frank surgiu na Bósnia. O diário de Zlata Filipovi, de 13 anos, contando os ataques sérvios a Sarajevo entre 1991 e 1993 foram lançados pela Unicef em servo-croata. Os conflitos na Palestina obrigaram Mourid Barghouti a exilar-se em 1966. Suas impressões, trinta anos mais tarde, estão no poético “Eu vi Ramallah”, em que conta seu retorno à terra natal.
A maioria dos autores de livros confessionais afirma que não se incomodam em expor-se desde que chamem a atenção para problemas ou práticas condenáveis. Em “Memórias sexuais da Opus Dei” (Panda Books), Antônio Carlos Brolezzi fala sobre o tempo em que pertenceu à irmandade e como se submetia a autoflagelação para reduzir a libido. Exatamente o contrário de Raquel Pacheco, que ficou conhecida como Bruna Surfistinha, autora de “O Doce Veneno do Escorpião” (Panda), há 50 semanas nas listas de mais vendidos no Brasil. Raquel, que está com um novo livro no mercado - “O que aprendi com Bruna Surfistinha – Lições de uma vida nada fácil” –, acha que sua incursão na literatura ajudou a reduzir preconceitos contra as prostitutas. “Meu objetivo era mostrar que as garotas de programa merecem respeito”. Sem querer derrubar tabus, “A Vida Sexual de Catherine M”, em que a madura crítica de arte francesa contava suas peripécias sexuais vendeu mais de 500 mil exemplares no mundo inteiro.

5.1.07

Valor Econômico - Entrevista Ruy Castro

Um outro Rio ainda é possível

Em seu último livro, “Rio Bossa Nova – Um Roteiro Lítero-Musical”, Ruy Castro dá endereços, dicas e informações para os interessados em continuar ouvindo o gênero que o escritor considera “genuinamente carioca”.

Valor - Ler "Rio Bossa Nova" é como mergulhar na cidade mais tranqüila de 40 anos atrás. Onde sobrevive o romantismo e o charme no Rio de Janeiro?

Ruy Castro - O mito da cidade "tranquila" de 40 anos atrás é mais difícil de matar do que o Rasputin. Mas é só um mito. Naqueles "anos dourados", o povo se queixava de que não era possível andar na rua, que os bandidos estavam tomando conta e a polícia não existia etc. Os jornais dos anos 30 já se referiam ao Rio como "a ex-cidade maravilhosa". Um dia, no futuro, vamos dizer que os anos 2000 é que foram os anos dourados. Porque, se você quiser romantismo e charme no Rio de hoje, lugar é que não falta -- vá ao Leblon, à Lapa, aos quiosques da Lagoa, ao samba no Largo da Prainha e a tantos outros lugares, em qualquer noite da semana. O Rio não tem culpa se basta alguém aqui roubar uma galinha para que isso saia na TV. Em outras cidades, o crime também pinta os canecos, mas ninguém dá muita bola. Há poucos anos, um Papai Noel vestido a caráter foi esfaqueado na véspera do Natal em Curitiba e morreu. Se tivesse acontecido no Rio, teria saído na CNN e já estariam fazendo um filme cretino a respeito.
Valor - Seu amor pelo Rio é mais do que declarado em seu trabalho. E como fica sua terra natal, Minas Gerais?

Ruy Castro - Sou tão mineiro quanto Milton Nascimento - nascido no Rio - é carioca. Em fevereiro de 1948, quando nasci, eu devia ter uns 50 parentes no Rio, entre tios, tias, primos e primas. Em Caratinga, MG, eu tinha exatamente dois: meus pais, que haviam acabado de se mudar do Rio para lá, eu na barriga da minha mãe. Deixei de nascer na Lapa por questão de meses. Caratinga, nos anos 50, era uma pequena comunidade urbana, com tudo de que eu precisava: dois ou três cinemas, uma livraria, um estádio de futebol, três jornais semanais, uma estação de rádio, várias bancas de revistas, três colégios e até um grupo de teatro amador. Era delicioso morar lá. Passávamos grande parte do tempo no Rio e, por isso, tive uma infância tão carioca quanto mineira.
Valor – Seu ritmo de trabalho é intenso e o senhor publica, em média, um livro ao ano, enquanto participa de antologias. Dá para viver de literatura no Brasil?

Ruy Castro - Claro, se você não parar de escrever nem por um minuto. Mas antes fosse um livro por ano. Só neste ano de 2006, foram dois livros inteiros, um deles, de artigos sobre cinema - "Um filme é para sempre", organizado pela Heloisa Seixas, minha mulher –, e não sei quantas participações em livros com outros escritores. Para 2007, há uns quatro livros novos em vista. Trabalho dia e noite e alguns livros levam anos. "Carmen", por exemplo, tomou cinco, dos quais os últimos três em tempo integral. Durante os dois primeiros, em 2001 e 2002, tirei algumas horas por dia para escrever outro livro pelo qual tenho adoração, "Carnaval no fogo -- Crônica de uma cidade excitante demais", sobre o Rio.


Valor – Seus recentes problemas de saúde vão levá-lo a reduzir seu ritmo de trabalho?

Ruy Castro - Já reduzi. Moro defronte à praia no Leblon e, até um ligeiro piripaco que tive recentemente, passava às vezes 15 dias sem atravessar a rua. Agora caminho todo dia no calçadão - é incrível como o calçadão está cheio de cardíacos saudáveis. E parei de comer torresmos no café da manhã.