26.10.09

Tamoio Notícias - Perfil Abdias Campos


Autor de mais de 100 livros, o paraibano Abdias Campos trocou uma carreira sólida como administrador de empresas para dedicar-se às incertezas da literatura de cordel há oito anos. “Dá para viver da arte, com a graça de Deus”, garante o simpático Abdias, que já participou de três bienais do Livro no Rio de Janeiro e uma em São Paulo. Em seu estande, de autor independente, ele organiza os coloridos livrinhos que vende a dois reais. A cada bienal, esgota os 4 mil volumes que traz de Recife, onde vive, custeando passagem, hospedagem, aluguel de espaço, e ainda “levando algum no bolso”, brinca.

Nascido em Olho D’Água dos Caboclos, próximo à localidade de Amparo, no sertão da Paraíba, Abdias Campos se considera um predestinado à literatura. “Fui trazido ao mundo pela parteira Zefa Canário, nasci ouvindo versos numa região toda de poetas. Quem saiu daquelas terras virou médico, advogado, engenheiro. Quem ficou, foi vaqueiro, fazendeiro. Mas todos continuam poetas”, diz Abdias, que foi para Recife estudar Administração de Empresas. Chegou a tentar empregar seus conhecimentos em uma fazenda que herdou. “Eu agi como poeta, não como administrador. Derrubei cercas, abri estradas e acabei vendendo tudo para fazer meu primeiro LP”, conta.

Para viver da arte do cordel, Abdias investe cerca de R$ 5 mil em eventos como a Bienal do Livro. É dali que saem importantes contatos para palestras e shows. “Já rodei Santa Catarina inteira com meu show de música e poesia em cordel, pelo circuito SESC. Conheci na Bienal um diretor do SESC que se interessou por meu trabalho e, desde então, não parei mais de trabalhar, seja apresentando espetáculos, seja fazendo cordel para publicidade”, conta Abdias, que nunca estudou música ou literatura formalmente. “Não quero perder o tom rústico de minhas composições, por isso não faço faculdade de Música ou Letras. Já imaginaram que horror seria ter um Pavarotti cantando repentes?”.
Foto: Angelo Antônio Duarte

Tamoio Notícias - Perfil Evando dos Santos


Evando dos Santos recusa-se a reconhecer o significado da palavra dificuldade. Leitor compulsivo e apaixonado, ele aprendeu a ler adolescente, há 11 anos montou a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto de Menezes, na garagem de sua casa, na Vila da Penha. Hoje, o acervo de 14 mil livros ocupa o primeiro andar de um prédio de três pavimentos projetado por Oscar Niemeyer e construído com recursos do BNDES. Tudo obtido graças ao empenho deste sergipano de 49 anos, que não se acanha em lutar para fomentar a leitura no País.

O entusiasmo de Evando é tão contagiante que ele sempre obtém apoio para manter a biblioteca e ainda contribui para aumentar o acervo de outras. Já enviou cerca de 20 mil livros para 26 bibliotecas em três estados nordestinos, no Amazonas, em cidades da Baixada Fluminense e até para Angola. Só para Sergipe foram 14 mil livros, enviados aos municípios de Aquidabã, Tobias Barreto, Malhada dos Bois, Tomar do Geru, São Cristóvão, Gracho Cardoso e Estância. “Um dos diretores da Transportadora Cometa ofereceu a remessa dos livros gratuitamente. Este tipo de atitude é que nos dá alento a continuar trabalhando para disseminar o amor pela leitura”, diz Evando, que atualmente paga as contas de água, eletricidade e telefone da biblioteca graças às doações de amigos e vizinhos, desde a morte de sua mãe, Zelita, no primeiro semestre deste ano.

“Ela era a nossa grande patrocinadora, me passou a paixão por ler”, conta Evando, que decidiu iniciar a biblioteca quando ganhou 50 livros de um cliente. Levou-os para casa, juntou com outros e avisou aos vizinhos que abrira uma biblioteca. Não havia prazo para devolução, nem registro de saída dos volumes. A notícia se espalhou e a garagem acabou ficando pequena. Foi quando começou a trabalhar para construir o prédio em terreno que era da família.

“Doamos o terreno à Biblioteca, que hoje é uma entidade filantrópica. Depois de conseguir o financiamento do BNDES, assistindo a um programa de televisão com o arquiteto Oscar Niemeyer, telefonei para a produção e pedi um projeto para a nova sede”, lembra Evando.

Atualmente, a biblioteca recebe cerca de 20 visitantes por dia. Os livros foram organizados por tema, nacionalidade ou naturalidade do autor. Evando jamais aceitou uma catalogação profissional. “Bibliotecários e arquivistas já se ofereceram para arrumar as estantes, mas eu quero que ninguém se intimide com os livros. O único compromisso é gostar de ler”, diz Evando.

A Biblioteca Comunitária Tobias Barreto fica na Rua Engenheiro Augusto Bernachi, 130, Vila da Penha. Telefone: 2481-5336
Foto: Angelo Antônio Duarte

14.10.09

Revista Aplauso - Edição 99


Hamlet

Wagner Moura vive o mais famoso personagem do teatro ocidental

A angústia de um homem em busca de vingança para o assassinato do pai e todos os questionamentos suscitados a partir da descoberta de uma verdade dolorosa fizeram de Hamlet o mais celebrado personagem da literatura ocidental, só superado em estudos ou citações, por Jesus Cristo. A tragédia de William Shakespeare chega ao palco do Oi Casa Grande estrelada – e produzida - por Wagner Moura, sob a direção de Aderbal Freire-Filho, depois de uma temporada de oito meses em São Paulo.

A nova montagem privilegiou uma aparente simplicidade. O palco é quase vazio, com poucos elementos cênicos. Para reduzir o tom impostado da representação, Aderbal fez uma nova tradução do texto – em parceria com Wagner Moura e com a professora de inglês Bárbara Harrington. O diretor e o ator falam aqui sobre a importância de Hamlet para o teatro de todos os tempos.




Aderbal Freire-Filho


O teatro vivo, a grandeza e a miséria da condição humana, a poesia, tudo está em Shakespeare. De um certo ponto de vista, todos os espetáculos, toda a vida de um artista de teatro é um caminho para Shakespeare, um caminho para alcançar a simplicidade do palco, sua poesia pura, e só assim poder mostrar a inesgotável representação do mundo das peças de Shakespeare.

Não são muitas as histórias e são infinitas as versões, as variações. A história de Ulisses, a de Jesus, a de Hamlet, a de Édipo, vamos contá-las sempre. Primeiro, ouvimos quando nos contavam. Depois vamos contá-las aos outros, assim anda a roda do mundo. Para as melhores histórias, todo tempo é o mesmo tempo.

Todo espetáculo de teatro feito a partir de um texto escrito é o resultado de uma co-autoria. E sempre uma parte dessa co-autoria é, obviamente, de autores vivos: os atores, diretor etc. Os vivos falam sempre do seu tempo, olham para o texto que encenam da perspectiva em que estão. Não vou fingir que sou um inglês da virada do século XVI para XVII para representar uma peça escrita nesse tempo. Nem Shakespeare fingiu que era um dinamarquês medieval para escrever sobre o tempo de Hamlet. Sou um brasileiro da virada do século XX para o XXI e é com as referências desse lugar e desse tempo que faço minha parceria com Shakespeare. Não gosto de chamar isso de inovar porque essa palavra pode ser traiçoeira, pode dar a entender que basta botar roupas de hoje e uns efeitos “modernosos” para ser atual e não é nada disso. Um espetáculo de jeans e camiseta pode ser velhíssimo e outro com roupas de época pode ser vivo, atual, novo. A vida, o presente, o novo não está só na aparência. As atrizes e os atores, esses sim, na maneira como atuam são vivos, isto é, presentes, isto é, novos. O espetáculo expõe essa vida.

Wagner Moura

Shakespeare é o melhor da época em que se fez o melhor teatro - a Europa, mais precisamente a Inglaterra da passagem do século XVI para o XVII. Hamlet é o que há de melhor em Shakespeare. Ali estão a compreensão extraordinária da natureza humana, a riqueza dos personagens, o domínio da narrativa, a poesia, o humor... Hamlet é o teatro da vida, a melhor peça já escrita.

A gênese desta montagem era a comunicação com o público. Hamlet foi um grande sucesso em 1600, não havia porque não sê-lo hoje também. A maioria das traduções paga tributo às portuguesas do século XIX, que pegavam o inglês elisabetano e traduziam para o português arcaico. Não há nenhuma razão para traduzir “go” por “ide”. Aderbal foi um mestre em passar o jogo de palavras do inglês shakespeariano para a nossa língua. Já acho até mais interessante montar Hamlet aqui do que nos paises falantes da língua inglesa, que não podem traduzi-lo.

A cada dia entendo mais o termo work in progress, que se aplica tão bem a qualquer trabalho em teatro, esse bicho vivo que se move. Hamlet é um personagem tão complexo, que pode ser feito de tantas formas... Duvido muito do crítico que vem com teorias acerca da psicologia de Hamlet (embora os psicólogos o amem). Stanislavski não se aplica a Shakespeare. Adoro pensar que o bardo antecipou Brecht. Hamlet não faria assim, Hamlet não agiria assado, Hamlet é deprê, Hamlet não pode rir, qualquer coisa que se diga é uma simpificação boba dos que querem dizer que conhecem bem Hamlet. Eu tenho convivido com ele e adorado conhecê-lo aos poucos, me surpreendendo a cada noite. Conhecê-lo e surprender-se com ele é conhecer-me e surpreender-me também comigo. Hamlet nos comporta a todos, todos somos Hamlet. Adoraria ter visto Paulo Autran fazendo o príncipe aos 80 anos. Daqui a quinze anos, vou retomá-lo e conhecendo-me, conhecê-lo mais um pouco. Puro work in progress...

2.10.09

Valor Econômico - Artes

Artes: Banco do Brasil celebra aniversário do seu primeiro espaço multicultural, que revitalizou uma área antes degradada.

20 anos de cultura no centro




Fachada do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio: suas atividades em todo o território nacional, incluindo o programa itinerante, que leva eventos a diversos Estados, já atraíram mais de 36 milhões de pessoas

Há 20 anos, caminhar fora do horário comercial pelas ruas próximas à Igreja da Candelária, no centro do Rio, era, no mínimo, uma temeridade. Nos fins de semana, o lugar permanecia deserto, conferindo um aspecto de cidade fantasma ao rico patrimônio arquitetônico local. O cenário começou a se modificar em outubro de 1989, com a inauguração do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Duas décadas, duas outras unidades - em São Paulo e em Brasília - e mais de 2 mil eventos depois, a criação do espaço multicultural e a forma de escolher os projetos para ocupá-lo por seleção pública rendem aplausos de produtores culturais, curadores e artistas. A eles se somam o entusiasmo de quem investiu nos imóveis do revitalizado centro histórico do Rio, uma região que hoje fervilha com instituições culturais, restaurantes, galerias de arte, sedes de grupos teatrais e até um bloco carnavalesco.

"O CCBB foi, indiscutivelmente, importantíssimo para a recuperação daquela área, que permaneceu abandonada por um longo período, e também para a mudança no comportamento do carioca, que, a partir da abertura do Centro Cultural, reconquistou o centro", afirma o arquiteto Augusto Ivan de Freitas, que coordenou, dentro da prefeitura carioca, o projeto do Corredor Cultural do Rio, que compreende 1 milhão de metros quadrados, abrangendo 3 mil imóveis preservados, entre eles o casario da área entre o CCBB e a praça 15.

Com o aproveitamento do prédio centenário na esquina da rua 1º de Março com a praça da Candelária, onde funcionava uma agência do Banco do Brasil, também se pretendia proteger o acervo da própria instituição, que ali mantinha uma biblioteca e um museu de numismática. "Sempre houve uma preocupação com o resgate da vizinhança", diz o diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil, Dan Conrado. Freitas confirma: "O banco pediu orientação para a reforma do edifício e, sem que houvesse nenhuma exigência da prefeitura, apresentou um projeto urbanístico para recuperar o calçamento, a iluminação e criar um jardim em frente do edifício".



Paola instalou sua Galeria Progetti na região: "Queria aproveitar o vaivém do público, que, geralmente, tem como destino o CCBB"

A nova ordenação do centro histórico do Rio foi gradual. Restaurantes sofisticados que vêm ocupando velhos casarões já são abertos nos fins de semana para receber o público que se desloca entre o CCBB, a Casa França-Brasil, o Centro Cultural dos Correios, o Museu da Marinha e o Paço Imperial. É uma revitalização que ocorre em metrópoles do mundo inteiro, lembra a italiana Paola Colacurcio, que há um ano comprou um sobrado na travessa do Comércio para instalar a Galeria Progetti. "Eu queria algo na parte mais fascinante desta cidade e queria aproveitar o vaivém do público, que, geralmente, tem como primeiro destino o CCBB."

Adquirir um imóvel na região está se tornando cada vez mais difícil. "Quem tem qualquer coisa ali não quer vender nem alugar, está aguardando a valorização", diz Rogério Quintanilha, gerente da administradora imobiliária Apsa. Durante a semana, os bares e restaurantes recebem quem trabalha no centro para shows musicais e happy hours. Nos fins de semana, a área é tomada pelo público das atividades culturais capitaneadas pelo CCBB, afirma Luiz Antônio Rodrigues, presidente do Pólo Histórico, Cultural e Gastronômico Praça XV, associação criada há dois anos, que reúne 27 empresas. "O CCBB é uma das âncoras do movimento ali", diz Rodrigues, dono da Brasserie Rosário.

A interação entre públicos distintos para eventos gratuitos ou com ingressos a preços baixos garante uma ocupação constante e crescente do CCBB, que em seu primeiro ano teve 100 mil visitantes. O número passou para 320 mil em 1990 e 1,3 milhão em 1991. Nos últimos 20 anos, as atividades do CCBB em todo o território nacional, incluindo o programa itinerante, que leva eventos a diversos Estados, atraíram mais de 36 milhões de pessoas - público que deverá aumentar com a abertura da unidade de Belo Horizonte, na praça da Liberdade, em 2011.

"Existe demanda de público para o crescimento do CCBB. A exposição de trabalhos do Aleijadinho, em 2006, no Rio, recebeu 1 milhão de visitantes, 11 mil por dia. O retorno, para o Banco do Brasil, vai além da fixação da marca. Demonstra o interesse do banco em valorizar a cultura brasileira, sim, mas também a importância de desenvolver projetos de arte e educação, promover a formação de plateias e abrir espaço para novas linguagens artísticas", diz Conrado.

Os investimentos na programação têm acompanhado o crescimento do público, mesmo em tempos de crise. Em 2008, os projetos nas três unidades custaram R$ 37 milhões, enquanto neste ano chegaram a R$ 41 milhões.

Construído em 1889, o prédio de 17 mil metros quadrados do CCBB, que foi sede do Banco do Brasil até 1960, atualmente abriga três teatros, uma sala de cinema, biblioteca, videoteca e 14 salas de exposição. As comemorações de aniversário - cujo ponto alto será um show de Paulinho da Viola - se estenderão, entre os dias 10 e 12, com apresentações teatrais pelas ruas vizinhas e no Centro Cultural dos Correios. "Somos parceiros dessa festa. Afinal, estamos aqui porque o CCBB foi o grande artífice da revitalização desta região e deu o passo inicial para a criação de centros culturais", afirma a diretora do Centro Cultural dos Correios, Marcelle Pitton. Entre os presentes para o público estão a inauguração de uma nova sala de cinema, melhores instalações para a videoteca, com seis salas para exibição de fitas de vídeo, além de um ônibus que vai buscar moradores de áreas distantes do centro para visitas agendadas.

Mais que tornar-se referência por ter no currículo um projeto aprovado pelo CCBB, o encontro com públicos heterogêneos é o principal atrativo desse centro para quem trabalha com cultura. O cravista Marcelo Fagerlande encenou óperas barrocas com lotações esgotadas durante temporadas inteiras. "O ingresso barato democratiza arte que não é popular. Muita gente me procurava no fim de espetáculo, demonstrando alegria pela descoberta de um tipo diferente de música."

Com mais de dez projetos patrocinados pelo CCBB, o músico Luís Felipe de Lima destaca a diversidade de propostas apresentadas. "O nome se sedimenta quando temos trabalhos no CCBB, que estimula um rodízio natural de artistas e intercâmbio de formas de expressão."

A atriz Beth Goulart, que terminou no domingo, no CCBB carioca, um espetáculo em que interpretava Clarice Lispector, é uma admiradora da seleção criteriosa de projetos pela instituição. "É uma oportunidade para o artista encontrar-se com públicos distintos, em todo o país, graças aos preços acessíveis."

Para Ana Teixeira, diretora do grupo de teatro Amok, o CCBB criou um novo público por não obedecer às leis de mercado. "Não é uma simples produção de espetáculo, é pensar a cultura."

O crítico de arte Fábio Magalhães, curador da mostra "Aleijadinho e Seu Tempo", destaca a educação em arte, a partir dos eventos ali realizados, como a principal contribuição do CCBB. "Ninguém se limita a assistir a um espetáculo ou a entrar em uma sala de exposições." Quer dizer, criam-se oportunidades para o começo de um possível trajeto.



Frederico Monier, chef e sócio da Brasserie Rosário: nos fins de semana, os bares e restaurantes da região são tomados pelo público das atividades culturais

Quando deixou a presidência do BNDES em 2002, o economista Carlos Lessa iniciou a reforma de dois sobrados geminados, na rua do Rosário, no centro do Rio. Os imóveis, centenários, pertenciam à família de Lessa e corriam o risco de desabar. "A situação era deplorável, porém jamais havíamos mexido neles temendo uma desapropriação."

A obra estava acabando e Lessa se interessou pela "parede vizinha", um terreno praticamente vazio, onde subsistia apenas parte da construção. Mal se instalaram nos imóveis recuperados a livraria Al-Farabi e o restaurante Brasserie Rosário, Lessa começou a indenizar 11 invasores de outro casarão no mesmo quarteirão. "Peguei gosto", diz ele, que já expandiu suas reformas de prédios antigos para outros bairros.

Apaixonado pelo Rio, o carioca Lessa recusa o título de pioneiro na revitalização do centro. Aponta o músico Marcos Rezende como o empresário de coragem e visão, por abrir o restaurante Cais do Oriente na rua Visconde de Itaboraí, atrás do Centro Cultural Banco do Brasil. "Cheguei depois", explica Lessa, que só não comprou o último sobrado do quarteirão porque, além de indenizações a invasores, o imóvel tem dívidas com concessionárias de serviços. "Na rua do Rosário, restauramos cinco casas e vimos aquela região tomar vida, levar as mesas para as ruas, tornar-se um ambiente festivo. O mais estimulante é constatar quanto essas intervenções contribuem para melhorar a qualidade de vida da cidade."

Recuperar imóveis em áreas de preservação arquitetônica é caro e complicado, mas vale a pena, afirma Lessa, que tem na mulher, Marta, a parceira perfeita no entusiasmo pelas empreitadas. "Não pretendemos vender nada, fazemos as obras sem a menor pressa. É um bom investimento até para quem quer viver de aluguel", acredita ele, que atualmente acompanha a reforma de um casarão no bairro do Catete, o nono imóvel que restaura. (OM)

Valor Econômico - Literatura


Literatura: O endividamento sob a ótica da ficção, da psicologia, da teologia e até da ecologia é tema de livro da canadense Margaret Atwood.
O lado sombrio da riqueza

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
02/10/2009




A crise financeira internacional mal havia estourado, em outubro do ano passado, quando a escritora canadense Margaret Atwood lançava "Payback - Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza" (Rocco, preço ainda não definido) - que chega nos próximos dias às livrarias brasileiras. Originalmente uma coletânea de cinco palestras tratando do endividamento sob a ótica da literatura, da psicologia, da teologia e até da ecologia, o livro foi um sucesso de crítica e de vendas, possivelmente impulsionadas pela situação da época. A autora cansou-se de repetir que não havia antevisto nenhuma derrocada econômica e o lançamento coincidira com uma exigência da editora.

Ela própria já havia escrito sobre o colapso financeiro na véspera da invasão do Iraque. "A crise era certamente previsível e muitos a previram. Guerras, principalmente as que têm campanhas como a de Napoleão na Rússia, estão entre as primeiras causas de endividamento das nações", disse a escritora em entrevista ao Valor, durante sua viagem à Europa para promover o último livro "O Ano da Inundação".

Reconhecida como uma das principais personalidades literárias da atualidade, vencedora do Booker Prize pelo romance "O Assassino Cego", aos 68 anos Margaret Atwood transita com destreza entre diferentes gêneros ficcionais, chegando a mesclar, na mesma novela, histórias paralelas de suspense e ficção científica.

No novo romance ela cria uma distopia, como já fizera com a sociedade totalitária apresentada em "O Conto da Aia". Desta vez, o mundo assolado por desastres climáticos é o cenário descrito. Militante ambiental respeitada, ela se cercou de cuidados para que a turnê promocional do novo livro fosse o "mais verde possível". Adotou alimentação vegetariana, cuidou de hospedar-se ou de fazer eventos em locais que tivessem uma política de conservação ambiental, atravessou o Atlântico Norte de navio e preferiu usar trens a automóveis, a fim de reduzir as emissões de carbono, já que "essas viagens tiram energia não apenas do autor".

A preocupação com as agressões ao planeta vem de berço. Na infância, viveu com a família em reservas florestais. Ressalta, no entanto, que não era uma fuga da vida urbana, apenas a consequência do trabalho do pai, biólogo. "Não ficávamos nas florestas durante o inverno, não era uma utopia. No entanto, há evidências de que crianças que crescem sem contato com a natureza têm problemas de desenvolvimento. Isso faz sentido se considerarmos que nossa história neste planeta foi sempre ligada à natureza. Adão e Eva foram expulsos de um jardim, não de um edifício!", diz a escritora, que, depois do casamento com o romancista Graeme Gibson, chegou a morar por alguns anos em uma fazenda. Voltaram para Toronto quando a filha do casal entrou na escola e perceberam que ela perderia muitas horas em trânsito até chegar ao colégio.

A militância ambiental também perpassa "Payback", já que a humanidade, segundo a autora, está em dívida com o planeta. O interesse em conservar a natureza aos poucos substitui os ideais yuppies de fama e riqueza, acredita. "De alguma maneira, a maré mudou. Um grande número de pessoas desistiu de enriquecer para salvar o planeta. Alguns até tentam combinar esses dois sonhos. O problema é que o dinheiro sozinho é inútil. É apenas um símbolo que podemos traçar por produtos reais e perde seu valor no momento em que as reservas de alimento se reduzem. Ninguém pode comer papel e metal".

As armadilhas do consumo fácil também já não conquistam tanta gente. "Já existe uma mudança no comportamento financeiro. As dívidas pessoais têm se reduzido, há esforços para acabar com a inadimplência", observa Margaret.

Embora alerte no livro para a relação quase infantil que boa parte dos consumidores tem quanto à utilização dos cartões de crédito - contraindo compromissos que não podem ser honrados no futuro, buscando na compra a satisfação de um prazer imediato -, a escritora não encara a dívida como um mal em si: "Usada construtivamente, a dívida ajuda a sociedade crescer. Cartões de crédito são excelentes, desde que pagos regularmente. Apenas quando não há nenhum tipo de restrição ou regras justas é que os credores se tornam vendedores, incentivadores de novas dívidas, obtendo lucros por meio do prejuízo de quem não pode pagar o que deve. E então surgem as falências e derrocadas do tipo a que acabamos de assistir".

Criada na década de 40, Margaret recorda em "Payback" que falar sobre dinheiro era quase um tabu. A discrição sobre o assunto - e em relação a outros temas como sexo e religião - foi gradualmente substituída por uma exuberância para tratá-los. Até chegar a crise de 2008. "A partir daí, começou-se a falar em dinheiro com desânimo", comenta a escritora, uma crítica da ostentação da riqueza, mesmo se usada em prol da arte ou de causas humanitárias. "É apenas uma forma de marcar status. Em algumas sociedades, quem faz doações é mais respeitado. Talvez os Medici patrocinassem artistas porque genuinamente amavam a arte, que também é um símbolo de status. É como se dissessem: olhem quanto eu posso gastar."

O interesse pelos diferentes aspectos da dívida surgiu a partir da observação de "um tema que está à nossa volta, é só começar a olhar". A exploração do assunto por programas de televisão mostrando famílias destroçadas por causa do comportamento irresponsável de um de seus membros, livros de autoajuda e anúncios de especialistas em finanças pessoais que ensinam o devedor a se recuperar financeiramente chamaram a sua atenção. Isso denotaria que o endividamento teria "superado sua fase inofensiva (...) e voltado a ser pecado", tomando um posto já ocupado pela gordura, pelo cigarro, pela bebida e pela prostituição.

Ao buscar na literatura tramas que abordassem a preocupação com dinheiro - ou com sua falta -, Margaret Atwood constatou que o tema era mais recorrente do que enredos que privilegiavam envolvimentos amorosos. Os registros sobre negociações patrimoniais aparecem nas mais antigas manifestações literárias da humanidade, incluindo aí a "Bíblia". A pobreza e o endividamento atormentam os personagens em quase todos os gêneros literários, notadamente os românticos, e são atraentes para boa parte dos leitores, diz a escritora.

As desventuras financeiras de personagens, como em "O Moinho do Rio Floss", de George Elliot, ou as de quase todas as heroínas românticas de Jane Austen, passando pelo "Conto de Natal", de Charles Dickens, têm função de movimentar os enredos, mesmo quando tratam do desespero e da vergonha dos devedores.

"Sexo e amor [como temas] são mais interessantes quando se é jovem, porque você ainda está procurando por eles e não sabe como vai se desenrolar sua história pessoal. Na época em que se chega aos 70 anos, se você teve sorte, é capaz de ter uma visão mais cósmica", afirma. De acordo com ela, o amor e o dinheiro estiveram firmemente entrelaçados durante a era romântica. "Até o poeta John Keats escreveu 'O amor numa cabana a pão e água é - que o amor nos perdoe - cinzas e poeira'. O melhor para uma jovem era se casar com um homem rico que amasse; o pior que poderia ocorrer era o casamento com um homem pobre e não amado. Riqueza com amor era ruim, pobreza com amor, aceitável, mas não a miséria. Ter um emprego não era possível para membros das classes médias ou das classes médias altas, que não tinham habilidades. Em meu romance 'O Assassino Cego', esse dilema é encarado por Íris e Laura", lembra.