23.9.08

Revista Aplauso Edição 95


Ensina-me a Viver
Glória Menezes comanda no palco uma celebração à vida
Um jovem mórbido que cultua a morte. Uma mulher às vésperas dos 80 anos, que celebra a vida a cada minuto. O encontro desses personagens antagônicos, que têm encantado platéias do mundo inteiro há três décadas, pode ser conferido pelo público carioca a partir de agosto na Sala Marília Pêra do Teatro Leblon, com Glória Menezes e Arlindo Lopes estrelando Ensina-me a Viver. Para o diretor João Falcão, o inusitado relacionamento entre o depressivo Harold e a anárquica Maude provoca discussões cada vez mais atuais: “Vivemos uma época em que empresas e hospitais promovem cursos de humanização para seus funcionários. A peça remete a reflexões sobre o prazer de viver com a maior intensidade possível, algo que muita gente esquece hoje em dia”.

Na década de 70, a comédia dramática Harold e Maude ganhou o mundo em seu formato cinematográfico, sob direção de Hal Ashby, com Bud Cord e Ruth Gordon nos papéis principais. Em 1982, Diogo Vilella e Henriette Morineau (mais tarde substituída por Maria Clara Machado) interpretaram o casal nos palcos cariocas. O texto do americano Colin Higgins conta a história de Harold, um rapaz rico e depressivo, que gosta de encenar diferentes formas de suicídio para chamar a atenção de sua mãe distante. Ao conhecer a exuberante e libertária Maude, Harold aprende a apreciar a natureza, as pessoas e o mundo.

“Viver Maude, um personagem tão rico e raro para atrizes na minha faixa etária é uma oportunidade única”, diz Glória Menezes, que se inspirou em uma tia-avó para compor a protagonista. “Minha tia era irreverente, casou-se com um homem mais jovem e jamais deu satisfações de sua vida para a família. Ela só não chegava a ser tão libertária quanto Maude, uma mulher solta no mundo, que, ao conhecer Harold, já contabilizava cinco ex-maridos. Combinei o dinamismo de minha tia com a doçura e a meiguice de minha avó Mercedes, outra mulher com uma forma muito especial de encarar o mundo”.

João Falcão e Arlindo Lopes não poupam elogios à atriz – e não apenas pela atuação como Maude. Creditam ao bom humor de Glória o clima alegre de trabalho. “Houve um entrosamento perfeito entre toda a equipe. Glória, certamente, é uma das responsáveis por isso, pois espalha energia positiva. Tê-la à frente do elenco é um privilégio. Sou admirador do trabalho dela em teatro, cinema e em televisão”, diz João Falcão.

Arlindo Lopes, idealizador do projeto, confessa a tensão que sentiu ao convidar Glória para o espetáculo. Ele havia adquirido os direitos da peça em 2003 e já tinha conseguido que João Falcão concordasse em dirigir. Sabia que Glória tinha interesse em interpretar Maude e que já pensara em produzir uma montagem. “Deu um frio na barriga, mas Glória não só aceitou como se tornou sócia na produção”. Era o início de uma bem-sucedida temporada de oito meses em São Paulo. O texto original, traduzido por Millôr Fernandes, não sofreu muitas alterações.

“É uma trama simples, mas que não ficou datada. O jovem Harold é soturno como muitos adolescentes de hoje, que parecem padecer de uma eterna inadequação à vida. Maude, ao contrário, é esfuziante como uma garota de 80 anos. O envolvimento amoroso entre os dois ainda causa espanto e até indignação, mas o que a peça mais remete é a indagações sobre o significado da vida através de Maude, uma mulher que domina a própria vida e também as platéias”, diz João Falcão. Glória Menezes concorda que o romance não é o ponto mais importante do enredo, e sim a possibilidade de transformação que todos deveriam permitir em suas vidas. “Qual jovem não gostaria de conviver com um adulto que vive de acordo com suas próprias regras? O personagem é simbólico, mas o público se identifica com essa mulher que decide até o dia de sua morte”, afirma Glória.

O fascínio que Maude exerce é constatado a cada espetáculo pela equipe. “Muita gente moça chega para nós e diz que querem envelhecer com a sabedoria dela. O mundo está cheio de jovens parecidos com o Harold e senhoras semelhantes a Maude”, acredita Arlindo Lopes.

19.9.08

Valor Econômico - Teatro

Na companhia do silêncio
Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
19/09/2008

Na companhia do silêncio

Sem camisa no palco, Sérgio Britto é um homem conformado com um destino de sofrimento, que não pode encontrar alívio sequer na morte. Minutos antes, de pijama e quimono, desesperou-se como um escritor que lamenta haver abandonado o grande amor de sua vida pela arte. A amargura e a fragilidade Britto deixa aos personagens criados por Samuel Beckett, como o homem que luta pela sobrevivência em "Ato sem Palavras I" e o intelectual solitário de "A Última Gravação de Krapp". Os dois solos exigem muito esforço físico do veterano ator de 86 anos, que, sentado na platéia do teatro Oi Futuro, no Rio, festeja com o entusiasmo de um estreante os elogios da crítica ao espetáculo, enquanto já sonha com o próximo, que só conseguiu inscrição na Lei Rouanet depois da interferência do ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Silvia Costanti / Valor
Sérgio Britto, que abraçou o teatro há 60 anos, seis dias após se formar em medicina: Ordem do Mérito Nacional, recebida neste ano, não impede que faça críticas à política cultural

"No Brasil, todo projeto é uma luta nova. O governo brasileiro deveria estar interessado em fazer teatro e não em fazer do teatro um espaço para sua política. É importantíssimo que patrocinem índios do Oiapoque e mamulengos de não sei onde, mas não é por isso que vão matar os velhos que fizeram o teatro brasileiro até agora", reclama.

O reconhecimento do governo por seus serviços à cultura brasileira chegou neste ano, quando ganhou a Ordem do Mérito Nacional. A comenda não serviu para reduzir suas críticas à política cultural. Apesar do prestígio, teve de recorrer ao ministro para incluir na Lei Rouanet a peça sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir que pretende encenar com Fernanda Montenegro em 2009. "Há um ano, eu e Fernanda entramos com o processo. Quando eu soube que pela segunda vez haviam perdido nossa documentação, falei com o ministro. O raciocínio do governo em relação ao patrocínio é confuso", afirma.

A banalidade disseminada pela cultura de massa também o incomoda. "O teatro brasileiro está cheio de pecinhas. O casalzinho de sucesso na novela de televisão monta uma pecinha, em vez de amadurecer e se preparar para fazer uma peça decente. Eu já disse que nunca vi tanta peça ruim quanto neste ano. As exceções são 'Salmo 91', 'As Centenárias', 'O Dragão'. Mas o pior do teatro está se apresentando agora, fruto da ausência de investimentos do governo, de preparo dos atores e do desaparecimento das companhias teatrais."

Em seu terceiro e "definitivo" Beckett, Sérgio Britto já perdeu a conta das peças em que atuou, produziu ou dirigiu, algo em torno de "140 ou 150". Há 60 anos, seis dias após se formar em medicina, abraçou o teatro profissionalmente, interpretando Horácio, em "Hamlet", sob a direção de Pascoal Carlos Magno. "Eu queria ser obstetra, mas me apaixonei por aquela brincadeira. Só desenvolvi a responsabilidade de hoje, em que chego duas horas antes do início do espetáculo, na segunda montagem do "Hamlet", quando fiz o Rei Claudius e percebi o risco do erro."

A descoberta aconteceu em cena, quando, durante um monólogo em que carregava um candelabro com velas acesas, ateou fogo a uma cortina. "Com a outra mão, soquei o pano velho e apaguei o fogo. Ganhei minha primeira salva de palmas como bombeiro", recorda-se.

Para evitar surpresas, toda sexta-feira ensaia "Ato sem Palavras I", testando os mecanismos que fazem descer ao palco os objetos que o personagem tenta agarrar. Ao fim dos 56 minutos de espetáculo se sente massacrado pela entrega aos personagens. Em "Krapp", há pouca movimentação. Come duas bananas, joga as cascas no chão, ouve o relato gravado da separação de cenho crispado, proferindo poucas palavras. Durante os 16 minutos do "Ato", caminha de um lado para o outro do palco, tentando alcançar uma garrafa acima de suas mãos. "Quando acaba, estou em fogo, transpiro tanto que fico quente. As pessoas falam comigo, eu nem ouço direito. Então, represento outro papel, do ator atento aos elogios."

A energia em cena credita ao carinho da atriz Isabel Cavalcanti, que convidou para a direção, e à preparação física pelos exercícios que faz diariamente com o sobrinho Paulo César, filho do irmão, Hélio. Quando superou a sétima pneumonia, em 2007, rendeu-se à necessidade da ginástica. "Minha geração não tinha esse costume, nem conheceu a expressão corporal. Só uma vez treinei pantomima com a Luciana Petrucelli, mulher do Gianni Ratto, em 1956. Agora faço musculação e danço. Estou mais forte. Mas se tenho saúde é porque o palco me dá saúde, não o contrário", garante.

Como Krapp, alter ego do irlandês Samuel Beckett, já tomou a decisão de encerrar um relacionamento pelo teatro, sem arrependimentos. Em sua peça mais romântica e autobiográfica, Beckett recrimina o personagem até no nome. "Krapp se xinga de cretino, de imbecil. A palavra inglesa 'crap' quer dizer merda. Não vivi o mesmo drama. Minha paixão pelo teatro sempre foi maior do que pelas pessoas. Não quero dizer que não sou capaz de gostar das pessoas. Infelizmente, gosto mais de teatro", esclarece, antes de se lembrar serenamente do amigo Fernando Torres, morto recentemente.

Britto enaltece o desprendimento de Fernando e preocupa-se com a viúva, Fernanda Montenegro. "Fernando era absoluto. Tudo o que admiramos na luta e no empenho pelo teatro Fernando fez permanentemente. Um ator excelente, que não se dava bons papéis - passava para os outros. Como era maravilhoso o olhar dele quando via Fernanda entrar em cena. Os dois eram totalmente integrados, Fernando sempre mais sério, contido. Mesmo nesse último período ele demonstrava o mesmo interesse pelo teatro. Só não suportava Beckett."

Depois da peça sobre Sartre e Simone, ele gostaria de voltar a encenar "Rei Lear", de Shakespeare. "Mas só se tiver um elenco sério, bem-disposto. Ou ainda posso encontrar um autor novo, diferente, que me empolgue", revela.

A renovação do teatro brasileiro, para Sérgio Britto, se dá por intermédio de atores como Wagner Moura, Lázaro Ramos, Wladimir Brichta, Selton Mello, Matheus Nachtergale, Andréa Beltrão, Débora Bloch, Dira Paes, Drica Moraes, Malu Galli, Mariana Lima. "Gosto muito de Fernanda Torres", destaca. Ao perceber que a maioria dos que citou já chegou ou se aproxima dos 40 anos, diz que é nessa idade que o ator começa a evoluir para a maturidade. Volta a lembrar da diretora Isabel, que "criou um ambiente de companhia" na equipe reunida para as peças de Beckett. "A satisfação com o trabalho é essencial. Quando minha mãe morreu, fui ao enterro de manhã e à tarde ensaiei uma ópera no Municipal. O trabalho aplaca a dor."

Sozinho em cena, tira sua companhia do silêncio da platéia. "É muito forte, muito bom, é o que mais gosto de ouvir, o silêncio total. É um complemento para o meu silêncio, a minha solidão. Parece que nesse silêncio absoluto está o compartilhamento entre palco e público", afirma, lamentando apenas não sair mais em viagem por cidades pequenas ou bairros de periferia: "Ali estão as melhores platéias, prontas a receber o teatro. Um público mais autêntico, que procura o teatro curioso, sem idéias preconcebidas".

4.9.08

Valor Econômico - Livros


Trabalho, razão para estar bem ou enlouquecer
Olga de Mello, para o Valor



O semblante sereno e o modo de falar tranqüilo do americano Joshua Ferris contrastam com o estilo sarcástico escolhido por ele para descrever a angústia de um grupo de publicitários ameaçados de demissão em seu aclamado romance de estréia "E Nós Chegamos ao Fim". Escrito na primeira pessoa do plural, para enfatizar o conceito de corporação, tão cultivado pelas grandes companhias, o livro já foi lançado em 20 países e tem conquistado elogios da crítica pelo retrato satírico, mas nem por isso pouco realista, do mundo corporativo. Um universo do qual Ferris se afastou há sete anos, com algum pesar. "Não imaginava quanto escrever é solitário. Eu gostava das conversas nos intervalos para tomar café. Essa interação acabou para mim. Hoje, meu escritório é em casa, onde só meu gato me interrompe", disse o escritor ao Valor, no Rio, onde esteve para o lançamento do livro.
Ao deixar o ambiente estressante das grandes companhias, Ferris quis expor um momento de transição - quando a cultura "yuppie" é assombrada pela crise das empresas pontocom. O livro mostra o esforço que os empregados fazem para manter-se no seleto círculo dos assalariados bem-remunerados, enquanto refletem sobre a individualidade que a cultura corporativa alardeia que devem esquecer, apesar da rotina altamente competitiva. Ao mesmo tempo em que lamentam a demissão dos colegas, cada um procura mostrar-se necessário à empresa, com tiradas supostamente brilhantes durante as reuniões da equipe.
Formado em literatura e filosofia, Ferris, de 34 anos, sabia que não combinava com a agitação movida a cafeína da vida corporativa - só toma bebidas descafeinadas e se espantou ao constatar que não eram oferecidas pelo restaurante em Copacabana onde deu a entrevista. Antes de dedicar-se inteiramente à literatura, Ferris teve uma experiência curta no magistério e foi redator de publicidade em duas agências em Chicago. O livro, afirma, não é autobiográfico, nem conta fielmente o que observou em uma das agências, onde houve corte de mais de um terço dos empregados, após o estouro da bolha da internet.
"Depois do 11 de setembro houve uma redução no ritmo de dispensas. Os atentados abalaram emocionalmente todos os setores da sociedade americana. No entanto, a vida corporativa sofre fenômenos cíclicos. Vivemos agora uma nova crise econômica em um universo corporativo descentralizado, com empresas de cartão de crédito prestando atendimento telefônico em países asiáticos, a custos inferiores aos que as companhias teriam se tivessem funcionários em suas sedes. Meu livro se situa em um momento imediatamente anterior ao atual", disse Ferris.
Os publicitários com salários astronômicos de "E Nós Chegamos ao Fim" apresentam alterações severas de comportamento frente ao temor da demissão. Há o demitido que insiste em voltar ao escritório diariamente, a chefe "workaholic" que trabalha na véspera de uma cirurgia de câncer, o colega que copia páginas de livros em xerox para ler durante o expediente, fingindo estar ocupado com material de trabalho.
"Todos os personagens são fictícios. Eu queria falar sobre aquela tensão, sobre o drama daquelas pessoas, para as quais o emprego significa mais do que contracheque e benefícios. O emprego é uma extensão deles, a empresa é vista quase como uma família. Eles não imaginam um futuro fora daquela realidade, da cultura de otimismo que a corporação lhes passou. O trabalho corporativo dá a sensação de que se é integrante de alguma coisa, como se sente quem freqüenta uma igreja. A perda desse status gera situações estressantes e humilhantes, além de provocar atos desatinados. O que muita gente não percebe é que o próprio trabalho, algumas vezes, leva as pessoas à loucura", comenta Ferris.

Nascido em uma cidade no interior do Illinois e criado na Flórida, Ferris vive atualmente em Nova York. Em sua primeira viagem ao Brasil, ele também participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Interessou-se pelo país quando se apaixonou por uma jovem brasileira, há cerca de 20 anos. "Eu era muito romântico, tinha 15 anos. Ela estava fazendo intercâmbio, mas a família que a hospedava era muito severa e não queriam nossa aproximação. Durante o curto período em que nos aproximamos, tentei aprender um pouco de português e sempre senti uma ligação especial com o país."