23.4.09

Valor Econômico - Livros

Lei é lei, exercer direitos é coisa bem diferente

Olga de Mello, para o Valor, do Rio
23/04/2009

I

"Histórias de um Superconsumidor" - Marcos Dessaune. Fundo de Cultura, 286 páginas

A legislação de defesa do consumidor é eficaz, mas permanece pouco utilizada, por comodismo, descrença na Justiça e temor de represálias. Quem diz isso é o advogado Marcos Dessaune, especialista em qualidade de atendimento, autor de "Histórias de um Superconsumidor", em que relata 35 casos de dificuldades em compras ou serviços vivenciadas por ele mesmo ou por pessoas próximas. "A cultura do conformismo ainda impera no Brasil", lamenta Dessaune, que chama de superconsumidores não os consumistas inveterados, mas quem conhece os princípios que regem as relações comerciais, algo claramente definido pelo Código de Defesa do Consumidor.

"Aos poucos, o brasileiro aprende a exercer seus direitos", reconhece Dessaune, lembrando que o Código de Defesa do Consumidor está em vigor há 18 anos. O principal entrave para a reclamação seria a "cultura do deixa disso". "A pessoa pensa duas vezes se vale a pena se aborrecer ou passar por constrangimentos. Isso se fundamenta no ceticismo do brasileiro. Ninguém acredita na Justiça, nem em instâncias inferiores. Processos judiciais, na verdade, estariam na última etapa de qualquer desentendimento entre fornecedor e consumidor. Tudo pode ser resolvido sem interferência da Justiça. Basta que as duas partes conheçam direitos e deveres."

Se as mudanças têm sido muito tímidas ao longo das últimas duas décadas, é por desconhecimento das leis, acredita Dessaune. "O errado passou a ser regra. Some-se a isso um comodismo arraigado em nossas tradições, e ninguém se mexe por seus direitos, exceto quando é um caso de desrespeito que cause indignação. Dos mais de 30 casos que apresento no livro, apenas 4 foram discutidos em juízo. Quis mostrar algumas experiências próprias, com as quais qualquer um se identifica, pois todo mundo já viveu algo semelhante, em lojas, aeroportos, restaurantes, fazendo compras pela internet."

Hoje, antes mesmo que o consumidor reclame, boa parte das empresas já se adianta em cumprir a lei, lembra o advogado. Isso, por que respeitar o consumidor agrega valor à imagem das companhias, da mesma maneira que a proteção ao ambiente e a responsabilidade social. "Quando uma fábrica de automóveis faz 'recall', demonstra preocupação com sua clientela. Atitudes de transparência, humildade, boa-fé e honestidade sempre são bem recebidas pelo público."

Mesmo assim, abusos persistem, como a falta de troco em estabelecimentos comerciais que oferecem balas ou caixas de fósforo para compensar o cliente pela perda de centavos. Um dos casos do livro aconteceu com a mulher de Dessaune. Cansada de receber balas como troco em uma padaria, ela decidiu utilizar as guloseimas como moeda para pagamento de mercadoria. "Foi uma solução criativa e definitiva. Ela levou as compras pagando em balas. E nunca mais recebeu troco em balinhas." Dessaune lamenta que tais iniciativas sejam individuais: "Seria preciso que todos os consumidores se unissem contra esse tipo de prática, para que ela não se repetisse."

Ainda hoje, quem reclama pode ser visto como criador de caso, diz o advogado, que não se incomoda com as críticas. "Está na hora de pensarmos que não somos encrenqueiros, e sim que estamos exercendo plenamente nossa cidadania. Isso acontece fora do Brasil, principalmente na Europa, no Japão e nos Estados Unidos. A conquista da cidadania é uma luta diária."

Em quase 20 anos, os campeões de reclamações que chegam aos serviços de proteção ao consumidor são as empresas de telefonia e os estabelecimentos bancários. A concorrência acirrada entre as empresas de telefonia móvel criou uma disputa que só trouxe vantagens para os assinantes. No campo da telefonia fixa, no entanto, os serviços continuam deixando a desejar, pois as concessões permitiram que continuasse a existir um monopólio no atendimento, diz Dessaune. Na origem da incapacidade de satisfazer o público estaria, porém, tanto para os bancos, quanto para as empresas de telefonia, o grande número clientes que eles reúnem.

"Bancos e telefônicas têm milhões de assinantes e correntistas. Não são centenas nem milhares de pessoas, são milhões mesmo. Há uma clara desorganização, eles não conseguem administrar serviços para essa quantidade imensa de consumidores. Então, acaba ficando economicamente mais vantajoso que paguem uma indenização aqui, outra acolá, do que resolverem problemas que afetam a essa clientela numerosa. Como atendem a tanta gente, nem sequer se incomodam com possíveis prejuízos à imagem", diz o advogado.

O livro traz também um apêndice que o autor chamou de Código de Atendimento ao Consumidor - um guia com preceitos éticos das relações de consumo a partir de sua base em lei, que não vê o cliente como alguém sempre com razão, embora o favoreça na maioria das vezes. "É preciso que as pessoas se familiarizem com a legislação, para encontrar soluções de maneira civilizada. O fornecedor tem obrigação de conhecer a legislação, mas o consumidor também pode se mostrar mais ativo em prol de seus interesses."