9.11.12

Valor Econômico - Política

Aqueles dias todos escuros

Por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
Reprodução / ReproduçãoDilma Rousseff mencionou Freitas (foto) em seu primeiro discurso de campanha
A lembrança mais antiga da jornalista Cristina Chacel relacionada aos tempos de regime militar é a de ver seus pais queimando livros, "provavelmente de conteúdo classificado como subversivo pela repressão, logo após a decretação do Ato Institucional nº 5, em 1968". Pouco depois, a família foi viver na casa de seu primo, o crítico de arte Mário Pedrosa, então exilado no Chile. Se alguém perguntasse por Pedrosa, Cristina seguia à risca a recomendação de informar que ele estava viajando e que não sabia quando retornaria.
"Ninguém explicava por que tínhamos de agir assim. Viver aos cochichos era comum durante a ditadura", afirma Cristina, autora de "Seu Amigo Esteve Aqui" (Zahar, R$ 42), a biografia de Carlos Alberto Soares de Freitas. Conhecido como Beto, Freitas, dirigente da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), um dos grupos que lutaram contra o governo militar, desapareceu em 1971.
Entre outros militantes ligados a Freitas estava a então estudante Dilma Roussef, que mencionou Freitas em seu primeiro discurso como candidata do PT à Presidência da República. Em 2009, ainda como chefe da Casa Civil, Dilma recebeu Cristina, para falar sobre o amigo, figura influente na sua formação política.
"Ela ficou muito emocionada ao conversar comigo, demonstrando que eram realmente muito próximos. Os amigos, parentes e ex-companheiros deram depoimentos comoventes sobre Beto. São pessoas muito marcadas pelo período de militância, quando, por norma de segurança, pouco sabiam sobre a vida dos outros. Isso ficou para a vida toda deles, tanto a discrição em torno dos assuntos pessoais quanto a confiança nesse grupo que não se dissipa, que está unido para sempre", diz Cristina.
Convidada por amigos e companheiros de militância de Freitas para escrever o texto, em 2009, Cristina sabia que não podia contar com registros oficiais sobre sua prisão ou morte, ocorrida, possivelmente, em maio de 1971, na chamada Casa da Morte - local de prisão de presos políticos -, na cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. O título do livro vem do comentário de um sargento do Exército para Inês Etienne Mourão, também presa na casa.
"Essa foi uma das poucas notícias sobre o destino de Beto, dada pelo sargento que, hoje, não fala sobre o assunto. É muito estranho para um jornalista não ouvir os dois lados de uma história, mas não sei quanto vale a palavra de um torturador. O governo militar nunca admitiu a prisão de Freitas, embora a União tenha concedido uma indenização a seus pais, em 2005, considerando que era um desaparecimento político", diz Cristina.
O projeto de pesquisa foi financiado com parte da indenização recebida por Sergio Campos, o último dos companheiros de militância a ver Freitas vivo. O livro conta a vida de Freitas desde a infância em Minas Gerais, passando pelo envolvimento com política, a imersão na clandestinidade, até o dia em que se despediu de Sergio Campos, ao saltar de um ônibus em Copacabana, no Rio. Também acompanharam a coleta de material e as entrevistas um primo de Freitas, Sergio Ferreira, e a jornalista Flavia Cavalcanti, outra ex-militante da VAR-Palmares. "Só eu assino o livro, mas este é um projeto de todos que se empenharam em relatar lembranças sobre o Beto, a fim de tirar do anonimato alguém duplamente desaparecido - da vida e da história. Este é um momento importante no resgate da história dos derrotados, em que a Comissão Nacional da Verdade busca levantar o sentido de um período em que os militares brasileiros não reconheceram os crimes hediondos que praticaram", diz Cristina.

© 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico.

Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/2897522/aqueles-dias-todos-escuros#ixzz2BmFBhg4c

Valor Econômico - Comportamento

Internet não impõe padronização

Por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio - agosto 2012
Divulgação / DivulgaçãoMartel: Em qualquer lugar do mundo, a música local ainda representa mais da metade de todo o material consumido. Na televisão não é diferente
Os Estados Unidos continuarão dominando a cena cultural mundial, mas, aos poucos, países emergentes economicamente também terão influência e distribuirão largamente seus produtos, enquanto os que se opõem à americanização da cultura ficarão para trás. A conclusão é do jornalista francês Frédéric Martel, autor de "Mainstream - A Guerra Global das Mídias e das Culturas", resultado de pesquisa que fez para retratar a indústria do entretenimento nos primeiros tempos da Web 2.0. "Queria falar das mudanças iniciais dessa revolução, que pode ser um ponto de virada de toda a civilização", disse Martel em entrevista por telefone ao Valor, durante suas férias no sul da França.
Entre 2005 e 2010, Martel entrevistou 1.250 pessoas em 30 países, todas com diferentes funções na produção de filmes, música, televisão, rádio e livro. Da pesquisa veio "Mainstream", um trabalho sem pretensão acadêmica, "mas um relato jornalístico bem embasado", afirma Martel. Durante quatro dos cinco anos em que se dedicou à pesquisa, ele morou nos Estados Unidos. Foi do contato com os principais criadores de 50% do conteúdo de entretenimento que circulam no planeta que ele partiu para esmiuçar a logística de distribuição de produtos - que obedecem a um rígido planejamento comercial, deixando de lado eventuais pretensões artísticas.
Na introdução do livro, Martel comenta que "mainstream", cuja tradução literal - dominante - tomou o sentido de produto cultural voltado para o grande público, "é o inverso da contracultura, da subcultura, dos nichos; para muitos, é o contrário da arte". Por sua importância econômica e qualidade, os produtos de entretenimento acabaram reconhecidos pela crítica especializada nos Estados Unidos, que abandonaram a defesa da chamada alta cultura, observada até hoje nos países europeus. Para Martel, o arranjo dos americanos na criação e distribuição de seus produtos de entretenimento no mundo inteiro não leva, necessariamente, à padronização da cultura, como entendem alguns.
"Em qualquer lugar do mundo, a música local ainda representa mais da metade de todo o material musical consumido", observa Martel. Na televisão não é diferente. "Apesar do sucesso das séries importadas dos Estados Unidos, as emissoras apresentam muito conteúdo local, como as novelas na América Latina. E mais de 50% da bilheteria obtida em cinemas da França, Japão e República Tcheca são para filmes nacionais. Na Índia, a proporção chega a mais de 80%. A indústria editorial não foge à tendência: ainda tem um foco bastante doméstico, assim como o noticiário ou o mercado publicitário." Enfim, "não é verdade que a cultura esteja se tornando cada vez mais global. A internet apenas permitiu nosso contato com a diversidade cultural".
Facilitadora do acesso a produções que em outras épocas permaneceriam desconhecidas no cenário internacional, a internet, no entanto, não rompeu barreiras políticas que privilegiam a diversidade cultural. Martel lamenta que muitos dos defensores da diversidade - em termos mundiais - não a adotem localmente.
"Nós, europeus, assim como os brasileiros, lutamos pela diversidade cultural que os americanos destroem sempre que tentam impedir o estabelecimento de cotas de exibição de filmes nacionais no México ou propagam a música anglo-saxã no Brasil ou na Argentina. No entanto, internamente, países como França, Canadá, China e Japão ignoram suas próprias minorias, desvalorizando dialetos e culturas locais", diz Martel. "No palco internacional, esses países fazem apelos pela diversidade, mas, em casa, obedecem a outras regras. Os Estados Unidos agem exatamente de maneira oposta. Lutam contra a diversidade em nível internacional, enquanto atribuem grande importância a suas diferenças étnicas. Existem 800 grupos teatrais afroamericanos nos Estados Unidos. Na França não levamos a sério nosso único grupo de teatro árabe."
A princípio, a velocidade da revolução tecnológica da informação deixou a indústria estarrecida. Em seguida, veio a reação, com uma discussão moral sobre a apropriação de direitos autorais, que, observa Martel, deve tornar-se obsoleta assim que indústria resolver a questão de remuneração dos criadores de conteúdo. No momento atual, a preocupação é criar interesse para os jovens consumidores, que transitam com intimidade pelas redes sociais, procuram informações no Google e descobrem novos músicos pelo You Tube. Um desafio que se apresenta também aos produtores culturais de países emergentes, que, segundo Martel, tendem a ganhar importância na área do entretenimento, desde que não se empolguem pelo ufanismo em torno das "características únicas".
Martel já esteve três vezes no Brasil. Aqui, conversou com jornalistas, atores, executivos da indústria fonográfica e da televisão e cineastas, entre outros. O mais famoso dos brasileiros entrevistados ele encontrou na França, o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, depois de um show em que o compositor se apresentou "cheio de energia e humor". Apesar do destaque dado à conversa com Gil, Martel não é dos que se derramam em elogios ao talento artístico brasileiro. "Mais do que talento, é preciso profissionalismo para conquistar o mundo."
"O Brasil tem admiráveis características únicas, mas não está sozinho. A globalização abriu diversos mercados regionais. México, Colômbia, Argentina, Turquia, Nigéria, Egito e até o Irã, este com conteúdos voltados para o público interno, também oferecem produtos interessantes", diz Martel. "A economia brasileira e sua influência cultural vão aumentar, incluindo aí seu principal produto de exportação, as telenovelas. A televisão brasileira já explora novos mercados na África, na Ásia e na América do Norte, onde, só nos Estados Unidos, moram milhões de latinos. No entanto, não vejo as novelas como um produto que sobreviva no futuro, pois os jovens gostam de outros conteúdos. Antes de insistir em novelas com os formatos atuais, é preciso convencer os jovens a assisti-los."

"Mainstream - A Guerra Global das Mídias e das Culturas"

Frédéric Martel. Tradução de Clóvis Marques. Editora Civilização Brasileira. 488 págs., R$ 49,90