4.2.11

Valor Econômico - Economia

A riqueza material espelhada na perda dos sentimentos morais
Por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
07/12/2010
Economia global: Dos tempos mais antigos à derrocada do sistema hipotecário americano, a humanidade percorre um caminho de altos e baixos na qualidade de valores que orientam a vida econômica.
“A Prosperidade do Vício”

Daniel Cohen. Tradução de Wandyr Hagge. Zahar. 200 págs., R$ 34,00

Publicada em 1801, a novela “Juliette ou as Prosperidades do Vício”, de Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade, conta a história de uma jovem que despreza os valores morais vigentes e passa a viver para satisfazer seus próprios desejos, sem qualquer consideração pelos que a cercam. Por “Juliette” e outro livro, “Justine e os Infortúnios da Virtude”, Sade foi encarcerado durante seus últimos 13 anos de vida em um hospício. A personagem Juliette, no entanto, não sofreu as mesmas sanções que o autor, pois, filha de um banqueiro, obteve a complacência da Justiça. A metáfora para a ganância de uma sociedade que adapta seus padrões éticos de acordo com os ganhos financeiros está em “A Prosperidade do Vício – Uma Viagem (Inquieta) pela Economia”, do economista francês Daniel Cohen.

“O título de Sade, para os economistas, remete a Malthus, para quem a prosperidade é alcançada através do controle populacional. Guerras, epidemias e outros males seriam, então, benéficos para a sociedade”, diz Cohen, que traça a história da economia ocidental, enquanto reflete sobre a relação do dinheiro com a satisfação.

“Depois que se ultrapassa um certo patamar, a riqueza não altera os níveis de frustração. A pressão social faz as pessoas sempre desejarem ter mais dinheiro que os vizinhos”, afirmou Cohen, em entrevista ao Valor.

O dinheiro que compra a conivência com a transgressão também modificou conceitos morais, mas nem sempre visando apenas o bem-estar de pequenos grupos, observa Cohen.

“No século XVIII, na Europa, houve uma modificação do status moral da ganância, que passou a não ser mais considerada um mal, um vício, já que traria prosperidade e paz”, diz o economista. Entretanto, a história mostra que paz e prosperidade nem sempre caminham juntas, lembra Cohen – tanto que justamente durante uma época de “prosperidade partilhada” eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Se a Europa hoje se apresenta como o continente da paz e da prosperidade, diz Cohen, “é ao preço de uma formidável amnésia de seu passado recente”. Para o economista, o maior risco no século XXI é a repetição, em nível planetário, da história do Ocidente, que, em quatro séculos de proeminência europeia sobre outros povos, terminou na barbárie da Segunda Guerra Mundial.

Vice-presidente da École d’Économie de Paris e professor da École Normale Supérieure, Cohen alterna observações históricas e esclarecimentos de economia em linguagem acessível a leigos. Um exemplo está nas páginas em que ilustra o perigo do consumismo desenfreado, que considera uma droga com milhões de dependentes e poder suficiente para “destruir nossa civilização”. Cohen sugere aos leitores que imaginem as consequências para a Terra se um milhão de chineses que utilizam bicicletas decidissem trocá-las por automóveis.

“O planeta não consegue absorver tantos consumidores sem uma radical reorientação das normas em que se baseiam nossos padrões de crescimento. Hoje, na nova era do vício, para obter relevância social é preciso crescer financeiramente, ou seja, enriquecer ou perecer”. O economista responsabiliza a avidez por consumo das famílias americanas por seu “formidável endividamento” e pela derrocada do sistema hipotecário, que resultou na crise financeira global.

O pessimismo de Cohen quanto ao futuro de um planeta exaurido pela ocupação predatória dos povos é compensado por sua confiança nos propósitos conservacionistas das novas gerações, ainda que faça ressalvas a formas de uso da internet, onde “florescem tanto os laços entre amantes de música quanto redes de pedófilos”. Cohen ressalta que nada tem contra a rede, cuja criação considera tão importante quanto a invenção da máquina a vapor e da eletricidade, há 200 anos. “Os novos recursos sociais que a internet proporciona são, no mínimo, ambíguos. Os jovens estão ansiosos para usufruir de seus 15 minutos de fama, enquanto prostituição e dinheiro se apresentam como valores em qualquer canto da rede. É o mesmo velho mundo, com uma nova roupagem. O que anima é que esses mesmos jovens acreditam na necessidade da proteção ambiental. Isso faz parte da cultura deles, exatamente como acontece com a internet.”

Embora se mostre descrente, Cohen tem esperanças de que haja cooperação entre os povos para reduzir as agressões ao ambiente. “Em tempos de crise, alinhar-se é uma regra difícil, pois significa fazer concessões para o bem público. A cooperação é a principal questão problemática no mundo atual. Depois da quebra do Lehman Brothers, a reunião de Copenhague do G-20 mostrou que há limites para a cooperação entre os países. O relacionamento entre a China e os Estados Unidos está mais difícil do que há dois anos. Da mesma forma, há mais obstáculos no relacionamento entre a Alemanha e outros países europeus, como Grécia, Irlanda ou Portugal”, diz Cohen.

Uma das raras citações do Brasil no livro é como exemplo do papel de controlador populacional exercido pela televisão. Daniel Cohen afirma que o Brasil, por ser grande consumidor de telenovelas, chegou rapidamente a menores patamares de crescimento demográfico, pelo fato de novos conceitos e comportamentos serem assim disseminados.

“Acredito realmente nas projeções sobre o crescimento econômico do Brasil, mas tenho muitas reservas quanto à ideia de que a China entrará pacificamente nesse grupo. A Índia ainda tem muito a fazer para alcançar a segunda fase da democracia, ou seja, tornar-se uma democracia social, que se preocupa com os direitos de seu povo. O núcleo de meu livro é lembrar dos precedentes da Alemanha, que se tornou uma superpotência industrial na Europa do século XX. Isso levou à paz e à democracia, mas por quanto tempo foi assim?”.

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