15.5.09

Valor Econômico - Teatro

Geração 80
Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
15/05/2009

Teatro: Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira, Cleyde Yáconis, Beatriz Segall e Sérgio Britto formam elenco estelar de artistas que mantêm a vitalidade com presença constante nos palcos

Indique | Imprimir | Digg | del.icio.us Tamanho da Fonte: a- A+



A partir de outubro, a atriz Fernanda Montenegro passará a integrar um elenco seleto de astros e estrelas nacionais, um time de artistas que ao chegar à casa dos 80 anos mantêm uma vitalidade incomum nos palcos do país. Além de Fernanda, que na quinta-feira estreia "Viver sem Tempos Mortos" em São Paulo, estão em cartaz Bibi Ferreira, de 86 anos, Cleyde Yáconis, 85, Sérgio Britto, 85, e Beatriz Segall, 82. Com biografias que se confundem com a história do teatro brasileiro, todos eles se amparam em boas condições de saúde, disciplina rígida e imenso desejo de experimentar. Alguns chegam a se aventurar por um circuito que ultrapassa as fronteiras do confortável eixo Rio-São Paulo e percorrem o Brasil: apresentam-se em festivais ao lado de quem começa hoje a trilhar seus caminhos, cativam novas plateias e abraçam um público fiel que não se limita a acompanhá-los pela televisão. Não por acaso, a agenda desses veteranos que emendam temporadas de sucesso é sempre repleta de compromissos.

"Viver sem Tempos Mortos", espetáculo que Fernanda apresentará no palco do Sesc Consolação, é um monólgo sobre a vida da escritora e feminista francesa Simone de Beauvoir (1908-1986). A atriz já levou a peça a cidades do interior do Rio e promoveu debates com o público depois das apresentações. Dirigida por um dos mais talentosos encenadores da nova geração, Felipe Hirsch, de 37 anos, Fernanda concebeu o projeto Caminhos da Liberdade, que incluía o contato direto com o público, além de exposição e exibição de documentários sobre Simone e a presença do ator Sérgio Britto como o filósofo Jean-Paul Sartre. O inesperado sucesso de Britto com "Ato Sem Palavras nº 1/A Última Gravação de Krapp", duas peças curtas de Samuel Beckett, levaram-na a seguir sozinha na empreitada.

"Queria mostrar uma pequena parte do esforço dos artistas até o momento em que se abre o pano", afirma Fernanda, que no espetáculo recorre a depoimentos da própria Simone de Beauvoir, extraídos de livros e cartas. "Pensar a cultura é uma militância. Sou de uma geração pós-guerra, que se pronunciava, que ia às ruas para pensar e sentir. Devemos refletir sobre o nosso cotidiano cada vez mais saturado de esperanças reduzidas pela falta de inteligência e pela brutalidade."

Atriz de grandes montagens teatrais como "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), e "Fedra", de Jean Racine (1639-1699), Fernanda credita o entusiasmo experimentado aos 59 anos de carreira aos anticorpos desenvolvidos pelas carências que acometem o teatro brasileiro.

"Na época em que bilheteria rendia, vivíamos melhor. Somos de uma geração que não dependia da comissão do governo, que sempre tem comprometimentos políticos. Sobrevivíamos a tudo quanto era infecção", afirma a atriz, que tem na bagagem de premiações um Urso de Prata em Berlim por sua interpretação em "Central do Brasil", pelo qual foi indicada para o Oscar. "Prosseguimos, mesmo com patrocínios que não cobrem as despesas de produção porque o prazer de abraçar um trabalho por vocação já faz ganhar alguns anos de vida. Deve ser uma tortura alguém descobrir tardiamente, quando não há mais volta, que gostaria de ter feito outra coisa", diz.

A um mês de completar 87 anos, Bibi Ferreira também não olha para sua longa carreira com essa angústia da frustração. A decana da geração de ouro do teatro nacional mantém um vigor invejável e se reveza entre a comédia "As Favas com os Escrúpulos", de Juca de Oliveira, e as viagens Brasil afora com o musical "Piaf", que encena desde a década de 80. Apresenta-se em festivais de teatro e leva o espetáculo para festas como a que abriu, em Ouro Preto, as comemorações do Ano da França no Brasil. Não faz planos para o futuro. Sabe que nele está, certamente, "Piaf", uma exigência do público.







"É impressionante o poder das canções de Piaf. Boa parte da plateia não entende a letra, mas quer ouvir. Fiz tantos musicais que, quando Juca [de Oliveira] me entregou a comédia, imaginei que teria um descanso", afirma Bibi, com seu bom humor habitual. "Juca sempre dizia que ia escrever uma peça para mim. E como escreveu! São 70 páginas para a minha personagem. Nunca falei tanto em cena. E, depois de dois anos, continuamos em cartaz", comenta a atriz, que interpreta a mulher de um político corrupto, arrancando gargalhadas e sendo aplaudida em cena aberta em quase todas as apresentações.

Já é parte da lenda do teatro a estreia de Bibi no teatro com menos de um mês de idade, na peça "Manhãs de Sol", de Oduvaldo Vianna (1892-1972). A recém-nascida entrou em cena porque a boneca que fazia o bebê no espetáculo estava quebrada. Profissionalmente, Bibi só voltou ao palco adolescente, ao lado do pai, Procópio Ferreira (1898-1979), ainda sem saber que sua vida seria no teatro.

"Como qualquer mocinha, eu estudava piano e um francês aguado, só para enfeitar a vida. Não passava nada por minha cabeça. Talvez pretendesse cantar. Saía para dançar, tinha amigos, namorado. Mas era uma grande plateia", relembra Bibi. A atriz assistia a uma grande variedade de espetáculos que chegava ao Rio. Eram muitas companhias portuguesas, italianas, algumas peças de Jean-Louis Barrault (1910-1994), de Dulcina de Morais (1908-1996). "Aprendi teatro com Henriette Morineau [1908-1990], com Procópio. A paixão veio depois, quando descobri a beleza de uma carreira em que se entra em contato direto com a humanidade."



Quase 70 anos mais tarde, Bibi sente que o tempo correu rapidamente enquanto encarnava mulheres sofridas como Joana, a Medeia contemporânea de "Gota d'Água", a esforçada Eliza Doolittle em "My Fair Lady" ou a musa de Dom Quixote, Dulcineia, em "O Homem de La Mancha". A música é seu território de conforto, porém não descuida da palavra falada nem do domínio técnico no qual apoia a interpretação. De preferência sem microfones, para não relaxar e perder o brilho da atuação. Cumpre à risca o que exige dos atores que dirige. "Deixar-se levar pela emoção é um risco. A voz pode fraquejar. Atores são atletas da palavra, precisam proferi-la em alto e bom som."

Sérgio Britto, que estreia nesta semana em São Paulo, no Sesc Santana, é um bom exemplo de atleta da palavra nas duas peças de Beckett. Sua interpretação enérgica lhe rendeu o Prêmio Shell 2008. Essa, porém, será a última oportunidade para o público vê-lo fora dos palcos cariocas. "Quem quiser me ver, terá que ir para minha cidade. Estou na idade de fazer o que me agrada", afirma. Ele lembra que não foi fácil chegar ao nível atual. Na década de 50, ele e Sérgio Cardoso desfizeram uma das companhias que fundaram depois de falir - não por falta de público, mas pelo atraso no repasse do patrocínio governamental.

"Sou de uma geração que lutou muito pelo esplendor que o teatro brasileiro conheceu nas décadas de 50 e 60. Participei de companhias importantes, ao lado de Fernanda, de Fernando Torres [1927-2008], Ítalo Rossi [78 anos], Paulo Autran [1922-2007] e Nathalia Thimberg [que completa 80 anos em agosto]. O teatro é o que me determina. Ele sustenta, injeta vida. Então, a gente reclama, briga e insiste. E aí vêm surpresas como esta boa receptividade ao Beckett, o que demonstra que há um público interessado em qualidade", diz Britto, que se formou em medicina, mas nunca clinicou.

A medicina também estava nos sonhos da paulista Cleyde Yáconis, 85 anos. "Minha vocação é para a ciência, mas meu talento é para a arte", costuma repetir Cleyde, que abraçou o teatro em 1950, ao substituir uma atriz adoentada na companhia que tinha como maior estrela sua irmã, Cacilda Becker (1921-1969). Acabou conquistada de vez pelo palco, aprendendo a atuar no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ao lado de Cacilda, Sérgio Cardoso (1925-1972), Paulo Autran e Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Aceitar o dom natural que não pediu a levou à busca por textos reflexivos, mesmo quando faz comédia.

"Não sou religiosa, porém senti que deveria retribuir ao público por esta aptidão que não pedi", diz Cleyde, há mais de um ano à frente do elenco de "O Caminho para Meca", de Athol Fugard, que já teve temporadas em São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Continuará a viajar com a peça até setembro, quando começa a ler novos textos, mesmo sabendo que no segundo semestre deve fazer televisão, a convite de Sílvio de Abreu, que pretende escalar Cleyde e Britto para viverem um casal em sua próxima novela. Em 2002, os dois já eram casados em cena na montagem de "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro", de Eugene O'Neill (1888-1953), sob direção de Naum Alves de Souza, quando ganhou por sua brilhante atuação o penúltimo prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. Tem mais cinco. Acumular trabalhos não a assusta.

"Vivi uma época em apresentávamos dez sessões por semana, com duas récitas às quintas-feiras, três no sábado. No dia de folga, eu ainda tinha dublagem de filmes para a televisão. Aquilo, sim, era puxado. Hoje, fazemos dez espetáculos por mês. Eu preciso do teatro, ele é precioso e essencial para me manter presente, viva. A única coisa que realmente temos é o trabalho. Ele é a sua alma, seu espírito, sua cabeça", afirma Cleyde.

Sem nostalgia, Beatriz Segall vê o amadurecimento como libertação de imposições e compromissos aborrecidos. Hoje, diz que tem crédito para cometer "pequenas loucuras". Entre elas a desistência de produzir espetáculos. "Estou vivendo a época mais feliz da minha vida, algo que só senti quando meus filhos nasceram", conta a atriz. "A alegria do artista é saber que sua aposentadoria será sentida pelo público. Continuo sendo chamada para o palco. Mas correr atrás de subvenção, inscrever projeto em Lei Rouanet, isso é passado para mim", diz Beatriz, que até o fim deste mês estará no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, em São Paulo, com o monólogo "A Senhora das Cartas", de Alan Bennett. Depois, pretende voltar a encenar alguma peça de Edward Albee. "Tudo depende de alguém decidir montar e se lembrar de mim", brinca.

Longe de se identificar com a obsessão pela boa forma, uma onda iniciada na década de 70, os artistas da geração 80 encaram os exercícios físicos como parte do preparo exigido para quem se entrega ao palco. Parte da disposição para viver personagens densos como a artista plástica que luta com preconceitos em "O Caminho para Meca" Cleyde atribui a hábitos regrados. "Não fumo, não bebo e não como carne, por opção mesmo. Não gosto do sabor. Minha dieta é à base de grãos. E depois de uma certa idade passei a fazer alongamento e musculação em casa", revela.

A coluna, vez por outra, incomoda Bibi Ferreira, exigindo sessões de fisioterapia. É o preço para quem faz questão de subir ao palco em desconfortáveis saltos altos. "Levo uma vida sadia, até idiota. Sou muito pacata, caseira, gosto de ficar lendo. Nunca fumei nem bebi. Acho que isso facilita para a disposição para, na mesma semana, ir a Palmas, no Tocantins, descer para o Espírito Santo, seguir até Ribeirão Preto, voltar para o Rio, fazendo dois espetáculos diferentes", observa Bibi, que ingere um coquetel de vitaminas "de todas as letras do alfabeto", além de preocupar-se em poupar a voz. Como Cleyde Yáconis, não concede longas entrevistas na semana em que estreia espetáculos.

"Depende da resistência física, mas também da cabeça o tipo de vida que temos aos 80 anos. Facilita muito ser apoiada por médicos que me acompanham há tanto tempo que me sinto quase casada com eles", brinca Bibi.


Beatriz Segall sente falta da hidroginástica quando sai em turnê pelo país. "As mulheres deixam os homens para trás na longevidade, na atividade. É que elas vão de encontro à idade, se preparam para enfrentar a vida", observa. Sérgio Britto rendeu-se à ginástica depois da sétima pneumonia. Não adoeceu mais. "Minha geração não tinha esse costume, sequer conheceu a expressão corporal. Só uma vez treinei pantomima. Agora, faço musculação e danço", diz o ator, que aparece sem camisa em cena durante o "Ato Sem Palavras nº 1".

Isabel Cavalcanti, que dirige Britto nas duas peças de Beckett, admira a seriedade e o desprendimento do ator, que a convidou para o espetáculo. O trabalho fluiu com harmonia em ensaios diários de apenas três horas. "Ele é disciplinado, chega na hora com o texto decorado. Respeita o público e a companhia."

Para Felipe Hirsch, que dirige Fernanda Montenegro, em "Viver sem Tempos Mortos", a geração de artistas que passou dos 80 anos "é capaz de tudo". Quando dirigiu o último trabalho em teatro de Paulo Autran, então com 85 anos, conheceu a empolgação de um ator entusiasmado como um estreante pelo trabalho.

"Com Fernanda também é assim. A paixão do iniciante está dentro deles, que se entregam ao teatro com a empolgação de amadores. Minha função é encontrar o ponto em que se escondem essas sensações."