17.9.10

Cultura: A ABL passa por processo de modernização, entra em fase de comunhão com as artes mais populares e adere às inovações tecnológicas.

A academia sacode a poeira

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

18/06/2010

Na reta final da campanha por uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), há um mês, Martinho da Vila já perdera a conta de quantas regras do protocolo dos candidatos havia quebrado. “Uma delas era não dar entrevistas”, dizia Martinho, que nem chegava a acreditar em sua eleição para a cadeira 29, que tem como fundador Artur de Azevedo e acabou sendo ocupada pelo embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti. Convidado a participar da disputa pelo presidente da ABL, Marcos Vilaça, o sambista representaria a entrada de um artista popular na casa, interessada em integrar-se à sociedade.

“Gosto da academia, principalmente nestes últimos tempos, em que demonstra apreço pela diversidade cultural”, disse Martinho, lamentando apenas a resistência dos acadêmicos em aceitarem músicos entre os imortais: “Orestes Barbosa foi o único músico a tentar ingressar, mas perdeu. Não bastou ter escrito ‘Chão de Estrelas’ e ser muito popular”.

Apesar da crítica de Martinho, a composição da academia é eclética, reunindo políticos, diplomatas, jornalistas, professores, escritores, médicos e um cineasta. O estatuto permite o ingresso de qualquer brasileiro que tenha publicado um livro. Nem todos são conhecidos do público. O único acadêmico atual que pode competir – e até suplantar – em popularidade com os mestres do passado é Paulo Coelho, que já vendeu 135 milhões de exemplares de seus livros no mundo e fez letras para sucessos de Rita Lee e Raul Seixas. Coelho, que representaria a ascensão de uma forma literária mais popular, nem sempre é associado à casa, cuja imagem tradicional pouco combina com as obras nada convencionais de alguns acadêmicos – tanto pela temática quanto pela forma literária.

Aos que pensam que o namoro da ABL com manifestações populares seja recente, Vilaça garante que a prática sempre existiu. “A academia jamais esteve empoeirada. Agora, talvez, haja pouco mais de divulgação sobre essas atividades”, pondera Vilaça, articulador de homenagens aos técnicos Joel Santana (futebol), Bernardinho (vôlei), a Martinho da Vila e à escola de samba Vila Isabel. “A academia está ligada diretamente às ciências humanistas. Joel, Bernardinho, Martinho da Vila e Noel Rosa fazem parte de nosso patrimônio cultural, assim como a produção literária dos acadêmicos”, afirma Vilaça.

A escritora Nélida Piñon credita a Vilaça a maior parte dos esforços pela atual fase de comunhão com as artes populares. “Ele imprime à casa sua visão cosmopolita do Brasil, lembrando que ela reveste de representatividade o trabalho que faz pela coletividade.”

Em seu terceiro mandato – não consecutivo -, Vilaça determinou a dinamização do site da ABL, que hoje tem conta no Twitter, no qual lançou um concurso de microcontos. O vencedor entre cerca de 2,5 mil inscritos será anunciado no mês que vem. Mais do que revelar novos escritores com poder de concisão para criar tramas de, no máximo, 140 caracteres, o concurso – o primeiro proposto pela academia – pretende alcançar os jovens que passam boa parte de seu tempo livre navegando na internet.

Inovações tecnológicas não assustam os acadêmicos. Até o fim do ano, todos ganharão leitores digitais Kindle, maneira de familiarizá-los com mais um espaço de publicação. A academia deverá lançar parte da obra de Joaquim Nabuco em formato digital, dentro dos eventos em torno do seu centenário de morte.

O campo da ABL nunca se restringiu ao fomento à cultura. Durante o regime militar, por exemplo, a instituição encabeçava, ao lado da Associação Brasileira de Imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil, as então chamadas “entidades civis”, que referendavam qualquer manifestação pelo restabelecimento da ordem democrática.

“A academia nunca decepcionou a comunidade. A luta política do momento é pela inclusão cultural. A ABL é madrinha das bibliotecas recém-inauguradas no Morro de Cantagalo, em Ipanema, e em Manguinhos”, conta Vilaça, que se entusiasma com a possibilidade de atingir 3,5 milhões de leitores por dia – os passageiros de 8.600 ônibus que circulam pelas ruas do Rio. Proposto pelo sindicato das empresas de transportes municipais, a Rio Ônibus, o projeto Circulando Cultura foi abraçado pela academia, que fez a escolha de 400 textos de 172 escritores brasileiros que estarão em banners dentro dos veículos.

“Serão textos e poesias curtas, todos de autores mortos. Os vivos já estão na mídia”, informa Vilaça, que espera estender a iniciativa a outros meios de transporte. “As barcas que ligam o Rio a Paquetá podem receber frases de Joaquim Nabuco, que passou sua lua-de-mel na ilha”, diz Vilaça.

Por mais de três décadas, entre 1959 e 1993, a academia teve no comando o tenaz Austregésilo de Athayde, responsável pelo atual conforto material da entidade. Por sua insistência, o governo federal doou à ABL o terreno vizinho à sua sede. Lá foi erguido o Palácio Austregésilo de Athayde, edifício comercial de 27 andares, em um dos pontos mais valorizados do centro do Rio. É a principal fonte de renda da academia, instituição particular que concede aos imortais rendimentos mensais que podem ultrapassar R$ 20 mil (incluindo plano de saúde vitalício e passagens aéreas para os que vivem fora do Rio) sem contar com verbas públicas, mesmo cumprindo rigorosamente o dever autoimposto de zelar pelo idioma. O gramático Evanildo Bechara coordena a Comissão de Lexicologia e Lexicografia, que atualiza periodicamente o “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”. Atualmente na quinta edição, seus 381 mil verbetes podem ser consultados diretamente no site da ABL.

A disseminação de cultura, outra das funções que estão no estatuto da ABL, se dá por seminários, palestras, debates, concertos, sessões de cinema e teatro. As atividades são gratuitas e montadas pelos acadêmicos. Os assuntos não se limitam à literatura. Em ano de Copa do Mundo, o futebol foi o primeiro tema do ciclo Brasil, Brasis, que promove debates com especialistas sobre vários assuntos, sob coordenação de um acadêmico. Em julho, a discussão será sobre mudanças climáticas. Em agosto, telenovelas e literatura. Em setembro, será a vez de pensar a dança, com Carlinhos de Jesus, Deborah Colker e Antônio Nóbrega entre os debatedores. Em outubro, estará em pauta a mulher brasileira. Em novembro, Aldir Blanc, Carlos Didier, Ricardo Prado, Sérgio Cabral e Luiz Paulo Horta refletem sobre Noel Rosa. “Não somos exclusivistas. A maioria dos eventos é sobre letras e literatura, núcleo onde atuamos por prazer e dever, mas há espaço para manifestações em outros campos”, diz Vilaça.

A despeito da atual fase de busca de visibilidade da academia, ingressar na imortalidade requer campanha intensa. O mais novo imortal, o diplomata Cavalcanti – que concorreu com Martinho; o presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Muniz Sodré; e o ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau -, sabe que até o comportamento discreto exigido dos candidatos ficou no passado. Antes de ser eleito, o postulante à imortalidade, além das amizades, precisa demonstrar interesse em participar de todas as atividades da casa.

“Há muito que a academia deixou de ser o repouso do guerreiro. Hoje, ela é quase uma empresa, que promove debates, edita revistas, cuida do idioma, tem movimento constante em suas bibliotecas. A ABL acompanhou a mudança mundial sobre o conceito de cultura, que se tornou mais amplo, abrigando não só o pensamento erudito. Em outra época, era mais sofisticada, europeia, ligada à filosofia. Hoje é mais antropológica”, diz Cavalcanti.

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