17.9.10

Valor Econômico - Comportamento

Gentileza gera gentileza, já dizia o profeta

Olga de Mello, para o Valor, do Rio
11/06/2010

Na década de 80, o concreto cinzento de 56 pilastras do viaduto do Caju, na Zona Portuária do Rio, começou a ser coberto por inscrições em verde, amarelo, azul e branco. Bandeiras do Brasil acompanhavam as mensagens ali pintadas por José Daltrino, o ex-proprietário de uma transportadora de cargas, sob uma nova identidade, a do Profeta Gentileza, que conclamava seus leitores a retomar valores como a solidariedade e a delicadeza, abandonados, segundo ele, pela sociedade capitalista.

Hoje, “Gentileza gera gentileza”, a frase usada por Daltrino para abrir os apelos pacifistas, está estampada em camisetas. Seus painéis vêm sendo recuperados pela prefeitura carioca, com apoio de diversos patrocinadores. O empenho em restaurar a obra de Gentileza, que morreu em 2003, começou no fim dos anos 90, quando seu trabalho chamou a atenção de Leonardo Guelman, professor do departamento de artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). As passagens por hospitais psiquiátricos não impediram Gentileza de incorporar-se ao cenário da cidade, observa Guelman.

“Ele soube se apropriar do espaço público para escrever um livro urbano, disseminando a cultura da gentileza. Não carregava dinheiro e não aceitava esmolas. Ele não era apenas um maluco beleza, mas alguém lúcido e sereno, que refletia sobre a crise nas relações cotidianas a partir da cultura popular”, diz Guelman.

A cerca de 2 quilômetros do viaduto do Caju, os valores pregados por Gentileza têm sido difundidos entre jovens que nunca ouviram falar do Profeta. Eles participam das oficinas oferecidas no Galpão Aplauso, uma ONG que desenvolveu uma metodologia própria para “qualificação em relações humanas”, explica a economista Ivonette Albuquerque, à frente do projeto, que tem apoio da Petrobras e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Pelo Galpão já passaram mais de 4 mil moradores de 300 comunidades pobres do Rio, interessados nas oficinas de artes plásticas, malabarismo, teatro, dança, música, entre outras especialidades. O aprendizado não se limita ao desenvolvimento de habilidades.

“Nas primeiras turmas que formamos, seis anos atrás, percebemos a resistência dos meninos, extremamente introvertidos e desconfiados. Levamos, então, a questão afetiva para dentro das oficinas, reforçando valores de uma maneira bastante lúdica. Falamos em respeito à cidade, ao outro, ao patrimônio público, em postura, em disciplina. No trapézio, a 20 metros de altura, é preciso confiar no colega que vai lhe dar a mão. Quem vai subir ao palco exercita a generosidade ao sair de cena para o outro brilhar”, diz Ivonette.

O cartão de visita da ONG é a Cia Aplauso de Teatro, que já montou seis espetáculos, apresentados em teatros do Rio, no Nordeste e na Alemanha. Cerca de 80 de seus ex-integrantes hoje trabalham em televisão, cinema, teatro e circo. Quem não demonstra talento para atuação, dança ou artes plásticas pode ingressar nas oficinas de capacitação profissional para eletricistas, ladrilheiros, e as áreas de carpintaria, costura, adereços, grafite, áudio, iluminação, cenotecnia e serralheria/solda – uma das mais procuradas, pois forma quadros para os setores de petróleo e gás, siderurgia e construção civil.

“Alguns vão cursar universidade, outros só trabalham, mas todos têm demonstrado que incorporaram os valores aqui aprendidos. Recentemente, oito meninos contratados por uma empresa de alpinismo industrial recusaram a proposta de uma firma concorrente, que ofereceu a eles salários superiores. Alegaram que não virariam as costas a quem lhes dera a primeira oportunidade de emprego. Isso é ética”, relata Ivonette, enfatizando que não há variação social na falta de valores: “A ausência de polidez é comum a qualquer classe social. E isso faz muita diferença no mundo do trabalho”.

O afrouxamento no cumprimento de códigos de convivência preocupa os especialistas. Se a transgressão de normas é natural na juventude, existe também uma busca por limites que os pais de hoje não estabelecem por comodismo, diz a psicóloga Júnia Vilhena, coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Mesmo reconhecendo que a pressão do trabalho é intensa sobre os adultos de qualquer classe social, ela critica a falta de autoridade paterna.

“Os pais pobres temem o envolvimento dos filhos com bandidos, enquanto os ricos fecham os olhos para o descaso em relação ao restante da sociedade, mas todos eles acobertam as faltas e dificilmente vão repreender esses jovens. Mas quando um projeto social ou artístico exige que os jovens se submetam à disciplina, eles se adaptam às regras. Isso prova que educar não é tarefa para analista”, afirma Júnia.

Já que a família delegou à escola o ensino dessas normas, preparar jovens para o mercado de trabalho deve ser uma das funções dos professores desde o ensino médio, acredita Maria do Carmo Leite de Oliveira, do departamento de letras da PUC-Rio. Há 20 anos organizando cursos de comunicação interpressoal para executivos, Maria do Carmo acha que o momento é de derrubar mitos, como a necessidade de manter comportamentos agressivos para alcançar bons resultados profissionais.

“Os melhores líderes são os que motivam suas equipes empregando a cordialidade. Como os pais, por negligência ou falta de tempo, deixaram de lado a transmissão de valores aos filhos, cabe ao professor, então, ensinar respeito e consideração aos alunos. A maioria dos estudantes brasileiros vai trabalhar assim que acaba a vida escolar. Eles chegam ao ambiente profissional sem noções básicas de convivência, porque as famílias não têm mais tempo de ensinar esses códigos”, afirma Maria do Carmo.

O cuidado com o “deslumbramento” de quem “vira artista” é essencial para Gutti Fraga, que há 24 anos criou o Nós do Morro, um dos mais reconhecidos grupos de artes cênicas do País, com cursos de e para a formação em teatro, cinema e audiovisual. A sede do grupo, que hoje conta com 480 integrantes, é no morro do Vidigal. Os 30 mil habitantes cresceram entre dois bairros de classe média alta, o Leblon e São Conrado, na zona sul carioca. O contraste entre os condomínios elegantes da vizinhança e as condições precárias de vida na favela levaram Gutti a imaginar um projeto que permitisse àquela população conhecer a cultura que nem sequer consumia.

“Aqui vivemos arte, cidadania, solidariedade e disciplina. O projeto nasceu para dar sustentabilidade aos seus integrantes. Recebemos temos mais de mil candidatos para as 80 vagas que abrimos a cada ano. Muitos são filhos de ex-alunos, de homens e mulheres que desenvolveram uma outra ótica a respeito da arte e a consideram essencial na formação, na educação”, diz Gutti Fraga, que não se rende aos elogios e prêmios acumulados pelo grupo desde a participação de seus atores em diversas produções de televisão e no filme “Cidade de Deus”.

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