28.8.07

Valor Econômico - Livros (2006)

O livro sem ritmo de samba
Por Olga de Mello, para o Valor
17/02/2006




Durante onze dias de março, de 9 a 19, quase um milhão de pessoas percorrerão o pavilhão de exposições do parque Anhembi, em São Paulo, para conhecer os lançamentos que 320 editoras apresentarão ao mercado na 19ª Bienal Internacional do Livro. Não é pouco, num país com baixos índices de leitores e de leitura (menos de dois livros por habitante/ano), embora os próprios organizadores (a Câmara Brasileira do Livro - CBL) e editores reconheçam que o público maior da grande feira não é feito de quem costuma freqüentar livrarias ou bibliotecas, mas, sim, de quem busca um bom programa para a família. De todo modo, o livro encontra na Bienal um espaço de celebração que é, em si mesmo, uma prova de relevância social e cultural, com reflexos também entre as crianças - público sempre numeroso na Bienal, para o qual se destinam atividades especiais, estimuladoras, quem sabe, de futuras idas a livrarias e bibliotecas.


As estatísticas sobre o consumo de livros poderão ser melhores no futuro, a ponto, quem sabe, de reduzir o peso de tiragens acanhadas sobre preços de venda nem sempre compatíveis com a renda do brasileiro médio. Mas esse é apenas um aspecto da questão. O desinteresse pela leitura começaria com a noção de que o livro é um formador de conceitos e não uma fonte de entretenimento, dizem muitos. Há poucas bibliotecas no país, e geralmente seus acervos se restringem a obras de "formação". O baixo número de livrarias completaria o quadro. Comenta-se até, meio a sério, meio de brincadeira, que há mais editoras que pontos de venda - um grau de segmentação que, no entanto, também atestaria a viabilidade do negócio em diferentes formatos.


"O governo tem uma política de fomentar a leitura, mas ainda há um longo caminho a percorrer", diz o vice-presidente de Comunicação da CBL, Marino Lobello. O país tem um território imenso, a distribuição para o interior é escassa. Culturalmente, o livro não faz parte da tradição brasileira. "Entra ano, sai ano, continuamos com um universo de 26 milhões de leitores. A população cresce, mas a proporção não se altera. Provavelmente, são famílias que reproduzem o hábito de ler entre elas mesmas. Aí, surge um fenômeno como 'Harry Potter', que desperta o interesse de novos leitores. No entanto, dificilmente uma biblioteca pública terá um exemplar da série."


Os romances "rosa", que agradam ao público feminino e são vendidos em bancas de jornal, também não chegam às bibliotecas, embora as mulheres sejam maioria entre os leitores brasileiros. De acordo com a pesquisa "Retrato da Leitura no Brasil", de 2001 (mas cujos resultados ainda são considerados de atualidade aceitável pelo setor), seis de cada dez leitores são mulheres, interessadas, sobretudo, por livros religiosos (45%), romances, biografias ou de poesia (26%), de filosofia e psicologia, incluindo auto-ajuda (19%). Os livros religiosos são os que as mulheres mais compram (23%), seguidos por romances (20%), infantis (9%) e auto-ajuda (6%).


AP

"Existe uma falsa noção no Brasil de que as pessoas deveriam nascer lendo Camões. Está na hora de encaramos a leitura com a mesma flexibilidade que o brasileiro tem em relação a novidades na música. Gostar de MPB não exclui o gosto por música erudita", compara Sérgio Machado, presidente do grupo Record, que abriga a Harlequim, uma das campeãs de vendagem de romances nas bancas de jornal. Existe uma evolução natural, como havia, antes, do livro com ilustrações para as histórias-em-quadrinhos e delas para a literatura, avalia Machado. Os gibis ficaram muito caros, se elitizaram perante a concorrência direta com o desenho animado da televisão. Os folhetins românticos ainda são baratos e popularizam o hábito da leitura, sendo consumidos por mulheres de diferentes faixas etárias e níveis sociais. "Por que, então, vamos desprezar essas leitoras? Porque consomem uma literatura que não é recomendada pelos intelectuais?"


Marcos Pereira, editor da Sextante, gostaria de encontrar a fórmula para cativar o público da Bienal. "Quem vai à Bienal é, basicamente, um consumidor. Ainda não descobrimos como transformá-lo em leitor. Todos os anos me espanto com a avidez desses visitantes, que enfrentam engarrafamentos para chegar à exposição, entram em filas imensas para conseguir autógrafos dos autores, acompanham palestras. Só vamos encontrá-lo novamente dali a dois anos", lamenta Pereira.


Um estímulo aqui, outro ali


Levar a Bienal do Livro de São Paulo para o Anhembi é o grande trunfo da CBL para aplacar as críticas de expositores quanto à data escolhida, duas semanas depois do Carnaval. "Tivemos que nos adequar ao calendário do Anhembi", explica Lobello, referindo-se aos desfiles das escolas de samba que se realizam junto do pavilhão de exposições. Na edição passada, a Bienal foi realizada no Centro de Exposições Imigrantes, numa área da cidade com menor facilidade de acesso.


As bienais do Rio e de São Paulo se destacam de outros eventos com livros no mundo por não haver negociação em torno de títulos. O livro é exposto ao público, não para o mercado. No entanto, poucas editoras ficam fora da mostra. "Comercialmente, as bienais não são importantes, mas, institucionalmente, são fundamentais", diz Carlos Augusto Lacerda, editor da Nova Fronteira. A Bienal de São Paulo deve movimentar perto de R$ 20 milhões este ano.


"O livro tornou-se pauta de discussão na imprensa, o que é importantíssimo para o mercado", lembra Sérgio Machado, da Record. De fato, editores e livreiros têm percebido um aumento gradual de interesse da imprensa por assuntos ligados à leitura. "Isso é fundamental para fazer do livro um objeto de desejo do consumidor", comenta Lobello. "Vinte anos atrás, com o fim do regime de Franco, a Espanha investiu em cultura e educação. Atualmente, é um dos países com a economia mais forte da Europa. Estamos anos-luz atrás da Espanha, mas já vemos algumas modificações positivas no mercado, como a internet suprindo a crônica escassez de livrarias fora dos grandes centros brasileiros", acrescenta. "E existe uma vontade grande do governo de popularizar o livro, abrindo pequenas bibliotecas, a única maneira de garantir a formação de um público leitor, algo que demora, no mínimo, dez anos para acontecer."


A percepção da leitura como um diferencial na formação profissional é outro dado que os editores têm observado. "Os headhunters privilegiam executivos que tenham alguma cultura geral. A sociedade brasileira passou a valorizar a leitura como não fazia antes. Vivemos dentro de um mundo com mais informação e conhecimento do que nossa capacidade de utilizar tantos dados. Destaca-se quem tem mais vivência, mais raciocínio, mais agilidade, habilidades desenvolvidas pela leitura", acredita Machado.


Enquanto as corporações descobrem as vantagens de contar com funcionários que lêem, o governo brasileiro - que continua sendo o maior comprador de livros do mercado - investe na formação de leitores. No ano passado, o Ministério da Cultura destinou R$ 26 milhões, o maior orçamento de sua história, para a implantação de bibliotecas. A previsão é de que, no primeiro semestre de 2006, a Fundação Biblioteca Nacional terá conseguido reduzir pela metade o déficit de cidades brasileiras sem bibliotecas, que era superior a mil no primeiro ano do atual governo.


Para Galeno Amorim, coordenador do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), cujas diretrizes serão apresentadas durante a Bienal, é essencial que a sociedade tenha "professores que gostem de ler". Sem descartar a importância de campanhas institucionais apoiadas por emissoras de televisão como a TV Globo e a MTV, além do merchandising de leitura em telenovelas e nos intervalos de competições esportivas, Amorim acredita que a ação mais eficaz para gerar leitores é o "corpo-a-corpo" feito por bibliotecários, professores e, especialmente, pela família.


"Como somente um entre cada quatro jovens e adultos brasileiros consegue ler e compreender um livro, o combate ao analfabetismo funcional, como vem fazendo o Ministério da Educação e diversos parceiros, é algo que leva tempo." Mas alguns resultados dessas políticas públicas de leitura surgem mais rápido do que se pensa. Em Ribeirão Preto, por exemplo, houve um esforço concentrado de toda a sociedade e em apenas três anos o índice de leitura saltou de 2 livros lidos por habitante/ano para 9,7, quase o dobro de EUA e Inglaterra e cinco vezes mais do que a média brasileira", conta Amorim.


A pesquisa "Retrato da Leitura do Brasil" aponta que a faixa etária que mais lê no país é de adultos com mais de 40 anos (40%). Outro grande grupo de leitores se concentra entre 20 e 29 anos, enquanto os que têm de 30 a 39 anos correspondem a 20% dos que lêem. Entre 14 e 19 anos estão 18% dos leitores. É grande o número de leitores que têm entre 10 e 11 anos. São estudantes interessados por leitura, mas que, durante a adolescência, vão perdendo o hábito, "o que certamente está relacionado à obrigatoriedade de leitura de certos livros", acredita Amorim.


Este ano, o Brasil receberá dados consolidados sobre a leitura em outros países latino-americanos, que também enfrentam problemas estruturais e o analfabetismo. Alguns, como a Colômbia, têm divulgado um índice de 2,4 livros lidos por habitante. "Quando tivermos base para comparar as estatísticas, verificaremos experiências bem-sucedidas, como a de Cuba", prevê Amorim.


Ficção e Bíblia na ponta


Qual gênero literário mais vende no Brasil? Como descobrir o que vai agradar ao leitor? Embora a primeira pergunta tenha uma resposta objetiva, a segunda ainda fica envolta em mistério. À parte os livros didáticos, que constituem um segmento próprio no mercado, sem comparação com os demais gêneros, os últimos dados computados pela CBL, em 2003, demonstram que os livros de ficção ainda são os preferidos dos brasileiros, com 12,8 milhões de exemplares oferecidos ao mercado naquele ano. Em segundo lugar vêm 12,175 milhões de exemplares da Bíblia. Caso fossem acrescentados os livros evangélicos (6,9 milhões) e espíritas (5,67 milhões), os volumes de temática religiosa seriam o de maior oferta no mercado brasileiro.


Vistas por gênero diferenciado, as obras evangélicas estão em sexto lugar, enquanto as espíritas ficam em oitavo. Obras de referência e consulta ocupam o terceiro lugar na lista, com 8,9 milhões de exemplares, seguidas pelas publicações sobre legislação e direito (8,4 milhões). Livros de auto-ajuda (4,6 milhões) estão na modesta nona posição, enquanto os de administração e gestão empresarial ficam no último lugar, com 2 milhões, aproximadamente.


O oportunismo pode produzir sucessos editoriais, mas ninguém consegue explicar a razão de livros como "O Monge e o Executivo", de James Hunter, estarem na lista dos mais vendidos há mais de um ano. Nem o editor Marcos Pereira, da Sextante, sabe a razão. "Fazemos apostas, claro. Vamos lançar, este ano, perto da Copa do Mundo, a biografia do Pelé. É mais que certo que vá vender bem. Auto-ajuda é um filão, acreditamos neste segmento, mas não há como prever se o mercado continuará se comportando da mesma maneira. O ano passado foi o melhor ano da Sextante e tudo indica que vamos continuar bem em 2006. Mas só uma mudança radical na economia faria o mercado de livros florescer", acredita.


Lacerda, da Nova Fronteira, comemora o êxito de "O Caçador de Pipas", que em quatro meses vendeu mais de 150 mil exemplares, com o apoio de uma eficiente campanha de marketing que projetou no Brasil o livro de estréia do afegão Khaled Hosseini. "A gente investe, mas é um tiro no escuro. O varejo é uma roleta, com um índice de acerto médio inferior a 10%", diz Lacerda. As vendas para o governo, o maior comprador de livros, são importantes na consolidação do hábito da leitura entre os estudantes: "Não há, porém, como esperar uma melhora no quadro se a leitura continuar sendo vista como uma atividade extradisciplinar pela escola. Ou se encara o livro como um fardo que o aluno deve carregar ou algo que vai complementar seu conhecimento. A leitura precisa ser encarada como uma disciplina própria e o livro precisa perder a pecha de paradidático, o que o desqualifica", afirma o editor.

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