28.8.07

No Mínimo -

Vida Nova aos 49 anos

12.05.2006 | Quando percorria a rodovia Niterói-Manilha, até um ano atrás, Maria da Graça Borel vislumbrava o contorno montanhoso da cidade do Rio de Janeiro, do outro lado da Baía de Guanabara, sem ousar sequer sonhar em conhecê-la. Não apenas a distância física a separava do Rio, mas também a falta de recursos a impedia de imaginar o passeio que a levasse a cruzar os 14 quilômetros da Ponte Rio-Niterói. “Eu tinha vontade de chegar perto da estátua do Cristo Redentor. Para falar a verdade, uma vontade pequena, não um desejo forte, pois, com tanto problema para me ocupar a cabeça, nem dava para pensar em diversão”, conta Maria da Graça.

Exatamente há um ano, ela se associou à cooperativa Modelarte, que reúne artesãs e costureiras de São Gonçalo, município com quase um milhão de habitantes na região metropolitana do Rio de Janeiro. “E, aí, acabamos conhecendo o Rio, passamos pertinho do Cristo, quando fomos vender nossas bolsas na Feira da Providência”, lembra, sorrindo, aos 49 anos, duas filhas e uma vida repleta de diferentes ocupações profissionais, sempre pressionada pela necessidade de sobrevivência a qualquer custo. Na Modelarte, Maria da Graça aprendeu a confeccionar móveis com garrafas PET e a trabalhar no acabamento de bolsas.

No começo, não reagia bem às brincadeiras do grupo, no qual passou a ser conhecida como Dona Tchuchuca. Acabara de fazer um curso de alfabetização para adultos e estava vivendo uma fase de grandes dificuldades pessoais e financeiras. Para sustentar a família, era catadora de objetos para reciclagem no lixão de São Gonçalo. Lembranças que não rejeita, mas minimiza: “Não tenho vergonha do que passou, mas passou, felizmente. E se Deus quiser, não voltará a acontecer. Pobre não se deprime, só pode desanimar. Minha filha pequena me obrigava a seguir em frente. Eu acho que não era depressão, não fui nem a médico. Falta de emprego dá angústia. Não tinha dinheiro, só contas a pagar. Não dava para ficar parada, mas também não sentia entusiasmo nem queria me arrumar, não queria nada. Não vivia, sobrevivia, com a auto-estima lá embaixo.”

A mudança no comportamento foi lenta. Aos poucos, Maria da Graça incorporou o novo apelido e, pouco a pouco, adquiriu confiança para puxar conversa com as colegas. O apuro na apresentação não se restringiu ao discurso. As roupas começaram a ser acompanhadas por acessórios. “Gosto de me produzir”, brinca. O riso, antes raro, hoje é fácil. Atualmente, é uma das mais expansivas associadas da cooperativa e uma das que melhor se expressam. “O que impressiona é como o vocabulário dela se aprimorou, como ela se utiliza corretamente de palavras sofisticadas. Ela chegou aqui curvada, cabeça baixa, calada, olhar sem brilho. Teve dificuldade em se adaptar, não gostava das brincadeiras que fazíamos na tentativa de nos aproximarmos, mas hoje parece outra pessoa, consciente de seu próprio valor, vaidosa. Foi uma transformação surpreendente”, comenta Pedro Belga, presidente da ONG Guardiões do Mar, gestora da cooperativa.

Extravagância: uma bolsa nova

Maria da Graça concorda que a participação na Modelarte foi decisiva para uma mudança positiva em seu comportamento: “Conviver com essas mulheres corajosas me fortaleceu. É uma turma amiga, alegre, valente! O jeito delas me contagiou”.
A pequena folga financeira, ao final de certos meses, permite a Maria da Graça uma modesta extravagância: “Quando sobram uns trocados, compro uma bolsa nova. Adoro bolsas! Não ligo para maquiagem, só um batom de vez em quando. Mas sou louca por bolsa nova. Comprar bolsas é meu hobby”, confidencia.

Ela soube da Modelarte enquanto fazia o curso de alfabetização para adultos, o Mova Brasil, projeto do Instituto Paulo Freire, patrocinado pela Petrobras, que também financia a cooperativa. Estava desempregada havia dois anos e não imaginava que começaria, depois dos 40, a aproveitar oportunidades que até então a vida lhe negara. Como não sabia costurar, entrou na cooperativa para separar o material que seria utilizado nos acabamentos de bolsas e no armazenamento das garrafas PET.

A Modelarte foi criada a partir de outro projeto desenvolvido pela Guardiões do Mar, envolvendo filhos de pescadores da região de São Gonçalo banhada pela Baía de Guanabara. As crianças eram estimuladas a recolher lixo no mangue e a confeccionar produtos artesanais, como fantoches de dedos. Mulheres de pescadores procuraram a ONG, querendo montar um novo projeto que gerasse renda para as desempregadas. Depois de pesquisas sobre a viabilidade econômica da área, a Modelarte foi implantada, abrindo a associação para moradoras de toda a região.

Foi o que mudou a vida de Maria da Graça, embora as dificuldades anteriores jamais a tenham impedido de se considerar uma pessoa “de muita sorte”. Recém-nascida, foi abandonada pela mãe biológica em uma maternidade de Nova Friburgo, na região serrana do estado do Rio. Aos quatro anos, foi adotada por um casal de lavradores, que já tinha nove filhos crescidos, e passou a morar no interior de Duas Barras. Os companheiros de brincadeiras eram os sobrinhos: “A escola ficava longe, aprendi a ler e a escrever um pouquinho com minha cunhada que era merendeira de um colégio. As crianças tinham que ajudar, pegávamos lenha para o fogão, cuidávamos dos animais. Mas dava tempo para subir em árvore, brincar muito. Foi uma infância boa, de fartura. Tudo era tirado da terra, não havia essa necessidade de agora de comprar batata, aipim, laranja”, recorda.

Essa época de folguedos terminou antes da adolescência. Aos 12 anos, começou a trabalhar como empregada doméstica. A baixa escolaridade restringia suas possibilidades de emprego. “O patrão enrola quem não tem muito estudo. A gente passa por muito desrespeito e acaba sendo obrigada a viver da caridade. Eu pegava roupa nas igrejas, catava latinhas de alumínio para vender, às vezes conseguia um emprego, mas nada com garantia.”

Hoje é diferente. A Modelarte já tem capital de giro e caminha para a auto-suficiência, recebendo encomendas de produção de bolsas de empresas como a Petrobras e a Eletrobrás. Em média, cada associada tira R$ 400 mensais - ganhos que podem aumentar com a abertura de um ponto de vendas da cooperativa no Shopping São Gonçalo, a duas ruas da sede da Guardiões do Mar, onde está instalada a oficina de costura e a de montagem dos móveis de garrafas PET. O Shopping, na Niterói-Manilha, recebe 800 mil veículos por mês e está modificando o perfil econômico da área. Desde a inauguração, o preço dos terrenos e de imóveis triplicou e novas construções surgem diariamente na vizinhança.

Plano: reforma da casa

O aumento de renda provocou, na maioria das cooperativadas, o interesse em voltar a estudar. A presidente da Modelarte, Leizimar Carvalho, 43 anos, decidiu matricular-se em um curso supletivo para acabar o ensino fundamental e começar o médio para não fazer feio na hora de negociar os produtos com “gente mais instruída”.

Maria da Graça, por ora, preocupa-se em garantir que Aline, sua filha de 11 anos, não deixe o colégio: “Ainda vou completar os estudos, mas agora o importante é estar atenta para que minha filha não saia da escola e nem fique à toa na rua. A experiência de começar um novo tipo de trabalho na Modelarte me fez descobrir que ainda há muito tempo para eu estudar. Então, antes vou fazer um curso de modelagem, corte e costura. Depois, completo o Ensino Fundamental e, quem sabe, o Médio.”

Construir novos cômodos na casa, furar um poço artesiano e comprar uma bomba d’água são alguns dos planos que pretende cumprir este ano. Quer também procurar os irmãos que continuam vivendo em Nova Friburgo, enquanto acalenta o sonho de confirmar se o sobrinho Benedito, adotado por uma de suas irmãs mais velhas na mesma época que ela, no mesmo orfanato, é seu parente “de sangue”: “Sempre fomos muito parecidos, todos nos tratavam como irmãos no orfanato, mesmo sem saber se éramos filhos da mesma mãe. Ele é um pouco mais velho que eu. É meu sobrinho, mas sempre nos consideramos irmãos. Eu gostaria de procurá-lo e, um dia, tirarmos essa dúvida a limpo, fazer um teste de DNA.”

Pode parecer pouco para brasileiros da classe média, mas são projetos que fazem a felicidade de Maria da Graça e, não faz muito tempo, nem sequer passavam por sua cabeça, tantas eram as dificuldades do dia-a-dia e a falta de esperanças no futuro...

Olga de Mello, nominimo.com.br

Nenhum comentário: