4.2.11

Valor Econômico - Livros

Uma história russa, de garrafa em garrafa
Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
18/01/2011
“O Rei da Vodca – A Saga da Família Smirnov e a Construção de Um Império”

Linda Himelstein. Trad. de Ana Beatriz Duarte. 364 págs., R$ 39,00

O consumo de vodca na Rússia significa mais do que um hábito ancestral – é um ato de identidade nacional. A bebida, que surgiu por volta de 1500 como elixir medicinal, era oferecida a mulheres em trabalho de parto, recém-nascidos, doentes, soldados na frente da batalha, trabalhadores antes do início da colheita ou de uma construção, e aos que assinavam um contrato para celebrar um novo negócio. Era com os impostos da vodca que o governo imperial russo cobria todas as despesas básicas do Estado e da defesa do país em tempos de paz.

Durante mais de 40 anos, a melhor vodca russa foi produzida por Peter Smirnov, um empreendedor que saiu da linha da miséria para tornar-se um dos mais prósperos industriais de seu país nos primórdios do breve capitalismo russo, em meados do século XIX.

Em “O Rei da Vodca”, a jornalista americana Linda Himelstein conta a trajetória do “self-made man” semialfabetizado, mesclada ao registro das profundas mudanças sociais que a Rússia atravessou até a tomada do poder pelos comunistas. Atualmente, a Smirnoff não apenas é a marca de vodca mais conhecida no mundo, mas a bebida premium de maior vendagem, informa Linda, que dedicou quatro anos à pesquisa de centenas de documentos, coleta de declarações de descendentes de Smirnov e de seus filhos, além de consulta a registros históricos sobre o conturbado período de ascensão e decadência da empresa.

Hoje, a marca, que vale U$ 4,7 bilhões, pertence a um grupo britânico e a vodca Smirnoff é vendida em 130 países. A popularidade cresceu a partir da década de 1960, quando garrafas de Smirnoff foram mostradas em filmes da série 007, já que a vodca integra o Dry Martini, drink favorito do espião James Bond. Cerca de 100 anos antes, Smirnov planejou uma ousada ação de marketing para fixar a marca. Ofereceu salário, comida, roupa e hospedagem a 15 desempregados, para que percorressem pontos de venda de bebidas de Moscou e pedissem uma dose de sua vodca, que deveriam beber e elogiar. Caso não a encontrassem, reclamariam em altos brados, seguindo para outro bar e repetindo o pedido. A estratégia foi tão bem-sucedida que Smirnov mandou os contratados a todas as cidades ligadas a Moscou pela linha férrea.

Mais do que a biografia do ex-servo empreendedor que criou uma indústria de bebidas de alta qualidade, fornecendo vodca para as principais casas reais europeias, “O Rei da Vodca” reconta uma época agitada por profundas transformações sociais. Linda apresenta Smirnov como um símbolo do que seria, então, a nova Rússia, um país que abandonava o sistema feudal e engatinhava em direção ao capitalismo, buscando a modernidade e a sofisticação da Europa Ocidental, a partir do fim da servidão em que viviam 22,5 milhões de pessoas – 40% da população.

O inovador Smirnov nasceu servo, mas aprendeu a ler e a escrever, o que lhe garantiu a possibilidade de trabalhar fora das terras onde a família vivia. Pôde economizar para comprar sua própria liberdade, antes da emancipação decretada pelo governo. Com sólida formação moral tradicionalista, Smirnov financiou a restauração de várias igrejas e participou da direção de diversas instituições de caridade.

Mesmo depois de tornar-se um líder respeitado entre os fabricantes de bebida, Smirnov teve que enfrentar batalhas contra concorrentes legais ou irregulares, tanto de falsificadores quanto de produtores caseiros de vodca. Já estabelecido como expoente entre os industriais, preparou-se para o monopólio da produção e distribuição de vodca pelo governo, fruto de uma intensa campanha que pretendia combater o alcoolismo na Rússia, liderada pelo escritor Lev Tolstoi. Se o próprio Smirnov bebia raramente, apenas para provar suas próprias criações, celebrar um acordo comercial ou nas raras ocasiões sociais a que comparecia, a Rússia tinha cinco vezes mais mortes atribuídas ao alcoolismo do que a França – onde o consumo de bebidas alcoólicas per capita era sete vezes maior (15,7 litros na França contra 2,7 litros na Rússia). Segundo observadores da época, o problema estava no tipo de bebida favorita do povo. Na França eram os vinhos. Na Rússia, a vodca.

Os índices de alcoolismo permanecem altos na Rússia. Em 2006, segundo Linda, a intoxicação alcoólica levou 33 mil pessoas à morte. Muitos, provavelmente, são consumidores da Smirnoff, que teve o nome ocidentalizado e voltou a ser comercializada no território russo, depois de extinta, quando a família perdeu a empresa e o patrimônio nos desdobramentos da Revolução de 1917.

O questionamento legal de direitos sobre a produção e distribuição da vodca e as diversas ações movidas por herdeiros levaram a autora a se interessar pelo assunto, em 1996. Com informações compiladas em mais de 500 documentos, em 250 artigos de jornais e periódicos, além de mais de 900 livros e entrevistas, Linda traça o panorama de um tempo de mudanças através de uma família que não se conformou com um destino pré-estabelecido.

Nenhum comentário: