17.9.10

Valor Econômico - Política

Política: Ao lançar “A Sombra do Ditador”, Heraldo Muñoz alerta que instituições débeis e apatia dos jovens ameaçam países da América do Sul.

Os perigos da democracia

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio

13/08/2010

Na manhã de 11 de setembro de 1973, o hoje diplomata Heraldo Muñoz saiu de sua casa, em Santiago, disposto a lutar contra os militares que até o fim do dia teriam deposto o governo do presidente Salvador Allende. Suas recordações sobre os primeiros momentos do golpe militar abrem “A Sombra do Ditador – Memórias Políticas do Chile sob Pinochet” (Jorge Zahar, 396 págs., R$ 59,00), em que mescla o relato de experiências pessoais com a trajetória do país da época da ditadura à retomada democrática.

Ao longo de dois anos, ele trabalhou em pesquisas até chegar ao texto final, que espera servir para contribuir com a “história de nossos tempos”, uma época em que, a seu ver, as democracias latino-americanas não correm riscos, porém convivem com instituições débeis e a apatia da juventude.

“Não acredito na possibilidade de novos golpes na América do Sul, como nas décadas de 60 e 70. O problema hoje não são as eleições ou os golpes, mas a qualidade da democracia. Nossas democracias são fracas, com instituições débeis. Há ainda corrupção, apatia dos jovens, desigualdade no acesso ao poder e à riqueza. Aí estão os perigos da democracia, não na intervenção militar clássica”, disse Muñoz ao Valor.

Na fase inicial do regime militar no Chile, Heraldo Muñoz escapou diversas vezes de ser preso. Em uma delas, voltando de uma reunião secreta com um amigo, que lera poemas esquerdistas, foi parado por soldados. O amigo, rapidamente, comeu os papéis onde escrevera os poemas para, depois, de liberados pelos guardas, descobrir que engolira uma conta de luz que estava no bolso, junto com as poesias. Em outra ocasião, soldados reviraram a casa de uma vizinha, achando que era o endereço de Muñoz, que permanecia na sala, aguardando a prisão – que não chegou a ser efetivada. Convencido pela mulher, a americana Pamela, ele se mudou para os Estados Unidos, onde fez doutorado em relações internacionais e trabalhou como pesquisador.

Alternando períodos no Chile e nos Estados Unidos, ele voltou ao seu país para trabalhar com o candidato à Presidência Ricardo Lagos pela coalizão de centro-esquerda que sucedeu Augusto Pinochet. Depois da eleição de Lagos, ele foi embaixador do Chile no Brasil e, no governo de Michelle Bachelet, representou o país na Organização das Nações Unidas. Atualmente, Heraldo Muñoz é diretor regional do Programa de Desenvolvimento para a América Latina e Caribe da ONU (Pnud). Embora há quase 40 anos defendesse a necessidade da resistência armada à ditadura, hoje ele entende que a única maneira de derrubar um regime de exceção é por meio da estratégia pacífica. “No campo da violência, Pinochet sempre ganharia, porque poderia continuar com a tese de guerra interna. Ele foi derrotado no plebiscito de 1988, depois de uma mobilização social que debilitou a ditadura.”

A solução pacifista não exclui, no entanto, a punição de quem cometeu violências em nome de qualquer governo, afirma o diplomata. A comissão que investigou as prisões políticas durante a ditadura chilena, ouvindo 35.868 pessoas, identificou mais de mil centros de detenções criados pela Direção de Inteligência Nacional (Dina), a polícia secreta que liderou a repressão. Só no Estádio Nacional, cerca de 7 mil pessoas foram interrogadas e, a maioria delas, torturadas. Quase todas as 3.339 mulheres que depuseram perante a comissão contaram ter sofrido violência sexual.

“Não acredito em anistia ampla para torturadores”, diz Muñoz. “Nossa geração é de filhos da ditadura. Muitas mulheres torturadas receberam apoio psicológico, mas as feridas são profundas, dificilmente desaparecerão com o tempo. Estamos marcados pela história que nos tocou viver.”

A figura de Pinochet hoje está apagada do dia a dia dos chilenos, que não perdoaram o ditador, diz Muñoz ao pintar um retrato pouco elogioso do general, mesmo no período anterior à tomada do poder. Aluno medíocre no colégio militar, Pinochet subiu na carreira sem demonstrar brilhantismo. Professava abertamente a fé católica, mas “na prática era a antítese dos valores cristãos, perseguindo, reprimindo ou criticando duramente os representantes da Igreja que ousaram defender a causa democrática ou advogaram pelo respeito aos direitos humanos”, denuncia Muñoz, recordando que, na visita ao Chile nos anos 80, o papa João Paulo II foi ignorado pelo ditador. “Pinochet era mais pragmático do que crente religioso”, conclui o diplomata.

Atualmente Pinochet é mantido a distância até pelos políticos de direita, que tentam se esquivar do legado do regime militar. Nas eleições de 2009, o neto de ditador tentou eleger-se – e foi derrotado – ao Parlamento sem estar filiado a nenhum partido de direita, já que nenhuma agremiação queria estar vinculada a seu nome. Mesmo para os que não viveram os tempos de repressão, a ditadura continua um tema permanente, afirma Muñoz: “Pinochet foi esquecido, não perdoado. A polêmica por uma proposta de anistia ampla, incluindo aqueles que violaram os direitos humanos, foi rejeitada recentemente pelo presidente Piñera e pela maioria dos atores políticos e sociais chilenos”.

Além de sua visão particular sobre o golpe e a ditadura chilena, o diplomata recolheu documentos e depoimentos que atestam o apoio do governo americano a Pinochet até o assassinato, em Washington, de Orlando Letelier, ex-diplomata do governo Allende, em 1976. Planejado pela Dina, o atentado teria sido uma ação da Operação Condor, o acordo entre os governos da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, do Brasil, da Bolívia e do Chile para combater os comunistas em todos esses países e até internacionalmente.

Mesmo sem a complacência dos Estados Unidos – principalmente durante o governo Jimmy Carter -, a repressão continuou, enquanto o Chile crescia economicamente, baseado no modelo neoliberal. Muñoz reconhece que houve um empenho de Pinochet pela prosperidade, mas lembra que o avanço chileno ocorreu em plena democracia, quando políticas públicas de inclusão social se tornaram prioritárias: “O verdadeiro milagre chileno aconteceu na democracia, quando os resultados econômicos foram bem melhores do que na época de Pinochet, e com justiça social. Crescimento para todos, em liberdade, com sindicatos ativos, Parlamento fiscalizando, mobilização da sociedade civil, imprensa crítica, esse é o milagre chileno, crescimento econômico sustentável”.

O diplomata aposta no espírito de superação do povo chileno, que atualmente se recupera dos terremotos do primeiro semestre. “A reconstrução terá altos custos econômicos e é um processo muito lento. Há quem acredite até que o terremoto será, apesar da dor que provocou, um estímulo econômico para que o país saia mais rapidamente da crise mundial”, diz Muñoz, que elogia o progresso “espetacular” em termos econômicos e sociais do Brasil. “Talvez tenha chegado a hora de concretizar aquela frase sobre o Brasil ser o país do futuro. Acho que, efetivamente, ele já é.”

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