6.10.06

Valor Econômico - Literatura

Cerimônias do adeus

Por Olga de Mello, para o Valor
06/10/2006

A chamada "hospitalização da morte", de que fala o escritor Philippe Áries, sepultou uma tradição da civilização ocidental: a reunião de parentes e amigos em torno do leito do doente em seus últimos momentos. Atualmente, raros são os que morrem em sua própria cama, cercados por pessoas amigas, mas as despedidas e os conselhos dos que estão prestes a morrer multiplicam-se nas prateleiras de livrarias, com boa receptividade do público. Os livros de "inspiração" abrigam desde os relatos das perdas pessoais de escritores como o inglês C.S. Lewis, a chilena Isabel Allende e a americana Joan Didion às conversas de Mitch Albom com um professor de psicologia que sofre de uma doença degenerativa. A eles recentemente juntou-se uma reflexão sobre viver e morrer com um ponto de vista inédito - o de quem sabe que está com os dias contados. Eugene O'Kelly, ex-presidente mundial da KPMG, decidiu deixar em livro suas observações sobre a vida quando soube, em maio de 2005, que teria cerca de três meses de vida.

Divulgação Joan Didion: sucesso de público com livro em que analisa o desamparo e a solidão que conheceu a partir da morte do marido, o escritor John Gregory Dunne

Passado o choque do diagnóstico sobre o câncer cerebral progressivo, O´Kelly traçou planos para, depois de afastar-se da presidência da empresa, aproveitar o tempo que lhe restava criando "dias perfeitos", nos quais estaria ao lado da mulher, das duas filhas, dos irmãos, da mãe e de amigos. Além de despedir-se de todos, planejou seu próprio funeral e começou a escrever "Claro como o Dia - Como a Certeza da Morte Mudou Minha Vida" (Nova Fronteira), no qual afirma que o excesso de dedicação ao trabalho embota a criatividade, que poderia ter aprimorado se tivesse passado mais tempo com a família. Sua viúva, Corinne, encarregou-se de concluir o manuscrito seis semanas após a morte do marido. "Eugene havia tratado diretamente com a editora a publicação do livro e nós trabalhamos juntos enquanto ele pôde escrever. Sua intenção era dizer ao mundo que não é importante quanto se vive, mas sim o que cada um faz com sua vida, e que ninguém precisa temer a morte", contou Corinne ao Valor.

Traduzido em dez países, "Claro como o Dia" já vendeu 80 mil exemplares no exterior, desde seu lançamento, em janeiro. No Brasil, 2% da receita obtida serão destinados ao Instituto Nacional do Câncer. Segundo Corinne, seu marido esperava que o livro incentivasse a dotação de mais recursos para pesquisas sobre a doença: "Qualquer parcela das vendas que venha a ser utilizada para pesquisas que procurem novos tratamentos para a doença vai exatamente ao encontro do que Eugene pretendia quando escreveu 'Claro como o Dia'".

Enquanto O´Kelly determinou em detalhes como seria seu funeral, o professor universitário americano Morrie Schwartz teve a idéia de reunir parentes e amigos para que lhe mostrassem os discursos que poderiam vir a fazer depois que morresse. Bem-humorado, Schwartz lamentou que um amigo, que sofrera um infarto fulminante, não tivesse podido receber todas as homenagens que lhe foram dirigidas em seu enterro. Schwartz promoveu, então, o que chamou de "funeral ao vivo". O otimismo do professor e suas observações sobre amor, trabalho, família, compaixão e amizade foram registradas por seu ex-aluno, o jornalista Mitch Albom, em "A Última Grande Lição - O Sentido da Vida". Lançado pela Sextante em 1998, o livro acaba de ganhar uma nova edição, depois de vender 200 mil exemplares no Brasil.

"Exitus Letalis" (Geração Editorial), escrito pelo médico boliviano Reginaldo Ustariz Arze, traz um contundente relato sobre o desenvolvimento do melanoma que matou sua mulher, Ruth, em 1994. Na forma de diário, o livro mostra todas as etapas do tratamento a que Ruth, também médica, foi submetida, e discute se há um nível superior de conhecimento tecnológico necessário no cuidado com pacientes terminais. Ustariz Arze, que vive em São Paulo, levou a mulher para passar os últimos dias de vida na Bolívia. Ruth, como Morrie Schwartz e Eugene O´Kelly, morreu em casa, acompanhada pela família.

A intensidade dramática de mensagens deixadas por quem já morreu foi aproveitada no telefilme "Sunshine - Um Dia de Sol", que no Brasil também foi exibido em cinemas e levou legiões de adolescentes às lágrimas com o drama de uma jovem mãe que grava conselhos para a filha pequena, ao saber que tem câncer. Os diários e gravações que inspiraram Norma Klein - uma autora de livros para adolescentes - a escrever a história eram de Jacqueline Heyston, que morreu de câncer ósseo aos 20 anos, em 1971. As gravações de Jacqueline também deram base para baladas de John Denver, que compôs uma bem-sucedida trilha sonora para o filme. Tema semelhante foi explorado pela irlandesa Cecília Ahern. Em "P.S. Eu te amo" (Relume Dumará), Cecilia conta a história de uma jovem viúva que abre cartas do marido morto com recomendações para que ela toque sua vida adiante.

Se a morte sempre foi um tema que levou à criação de belas peças literárias, como o soneto que Machado de Assis dedicou à mulher ("A Carolina") ou o poema "Funeral Blues", de W. H. Auden, nem todo escritor quis expor publicamente sua própria dor. O autor inglês C. S. Lewis, celebrizado pela saga "As Crônicas de Nárnia", lançou sob o pseudônimo de N.C. Clerk, em 1961, o diário que escrevera sobre o desespero e a revolta que sentiu com a morte da mulher, Joy. Embora afirmasse que não queria associar sua experiência particular à obra como escritor, Lewis acabou cedendo à insistência de amigos e reconheceu a autoria do livro.

Em 1995, a romancista Isabel Allende escreveu "Paula", uma longa carta em que mistura suas próprias lembranças à biografia da filha de 29 anos, que estava em coma. Mesmo sabendo que Paula jamais se recuperaria - ela ficou um ano inconsciente até falecer - Isabel continuou coletando histórias da família como se ainda pudessem serdirigidas à filha. O sucesso do livro gerou um outro, "Cartas a Paula", em que a escritora reuniu mensagens de leitores que lhe expressavam solidariedade. Por causa de Paula, que se dedicava a trabalhos sociais, Isabel criou uma fundação que dá apoio a organizações de ajuda a mulheres e crianças carentes.

A ensaísta e romancista Joan Didion entrou pela primeira vez nas listas de livros mais vendidos nos EUA quando lançou, em outubro de 2005, "O Ano do Pensamento Mágico" (Nova Fronteira), livro em analisa o desamparo e a solidão que conheceu a partir da morte súbita do marido, o escritor John Gregory Dunne. A escritora mostra suas próprias reações enquanto comenta desde manuais de etiqueta do início do século XX a textos do antropólogo inglês Geoffrey Gorer, que credita à "profissionalização da morte", reservada aos ambientes hospitalares, um novo comportamento social, que estimula os enlutados a esconder suas manifestações de sofrimento, sem que incomodem "a alegria dos outros". A extensa pesquisa da escritora é entremeada por recordações dos quase 40 anos de convivência com John e a filha Quintanna, que morreu enquanto a mãe escrevia o livro.

Para o psicanalista Luiz Alberto Py, livros que falam sobre a proximidade da morte têm muita procura porque apresentam maneiras diferentes de vivenciar o que a sociedade ocidental encara como uma perda material. "A morte anunciada nos permite fechar as contas com a vida. Já acompanhei pacientes terminais. Quem sabe que vai morrer procura dar o que tem de melhor aos outros, como se fosse abrir seu próprio testamento em vida, e encara a morte não como um mal, mas como um momento da existência."

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