3.10.06

Valor Econômico - Literatura

Empresas em tempo real

Por Olga de Mello, para o Valor
19/05/2006

Carros velozes, vida frenética, iates, mansões, luxo, roupas caríssimas, algumas drogas, sexo, muito sexo. Junte os ingredientes e uma pitada de tensão, mais um conflito moral, alguma espionagem e uma perseguição pessoal. Mexa bem e um novo thriller está pronto para ser servido a milhões de leitores. Se os milionários produtores de cinema, banqueiros e executivos dos romances dos hoje ultrapassados Harold Robbins, Arthur Hailey e Irwin Shaw pareciam distantes de personagens reais numa época em que homens de negócios se escondiam de flashes e manchetes de jornais, atualmente eles podem ser facilmente identificados: têm as feições de Donald Trump ou Martha Stewart. Cada vez mais, escritores como Stephen Frey e Joseph Finder situam suas tramas em grandes empresas muito parecidas com as que estão diariamente no noticiário.

Eduardo Knapp/Folha Imagem Em "Rapina", de 1995, Ivan Sant'Anna usou sua experiência no mercado financeiro para traçar um paralelo entre atividades lícitas e ilícitas

A diferença fundamental entre os atuais "thrillers corporativos" e seus antecessores é que as empresas agora não são relegadas a um mero cenário para a escalada profissional e pessoal de seus protagonistas, que lutam pela preservação de seus bons empregos e altos salários. Numa época politicamente correta, eles até sofrem dilemas morais, angustiados por seus erros de caráter, algo que não acontecia sequer em romances aclamados pela crítica literária, como "O Que Faz Sammy Correr?", de Budd Schulberg. Filho de um produtor de Hollywood, Schulberg causou sensação, em 1941, ao apresentar Sammy Glick, um jovem mensageiro de um jornal que ascende vertiginosamente, até presidir um estúdio cinematográfico, sem o menor pudor ético. A indústria do cinema, uma das mais lucrativas da maior nação capitalista do mundo, foi mostrada por muitos romancistas, incluindo Scott Fitzgerald, que morreu antes de concluir "O Último Magnata", cujo protagonista era claramente calcado na personalidade do produtor Irving Thalberg.

Schulberg e Fitzgerald jamais figuraram ao lado dos autores de thrillers, dos quais estavam distantes, tanto pela indiscutível qualidade literária quanto pelas modestas vendas, se comparados com quem ultrapassa a barreira de 60 milhões de exemplares, como John Grisham, especializado em tramas envolvendo advogados. O gênero tão desprezado pela crítica especializada produziu seus primeiros milionários a partir dos anos 1960. Foi com um personagem nitidamente inspirado em Howard Hughes que Harold Robbins conheceu o sucesso. Publicado em 1961, "Os Insaciáveis" traz a história de Jonas Cord, que fica riquíssimo aos 21 anos, tem paixão por aviação e decide incluir o cinema entre seus investimentos. Apesar de haver vendido mais de 50 milhões de livros em 40 países, Robbins jamais foi respeitado pela crítica (até seu tradutor brasileiro, Nelson Rodrigues, o chamou de "um momento da estupidez humana"), que se mostrava mais branda com seus competidores diretos, Irwin Shaw e Arthur Hailey.

"Hailey era um pesquisador, tinha alguma qualidade. Mas o melhor yuppie da literatura foi criado por Tom Wolfe, em a 'Fogueira das Vaidades'", aponta Ivan Sant´Anna, autor de três romances com trama no mundo corporativo, entre eles o aclamado "Rapina".

O operador de obrigações da Bolsa de Nova York, Sherman McCoy, protagonista de "A Fogueira das Vaidades", é um retrato exato de homens que Ivan Sant´Anna conheceu em 37 anos de trabalho no mercado financeiro. "Ele descreve perfeitamente aqueles homens muito vaidosos que gostam de ostentar sua própria riqueza, usando ternos de U$ 15 mil e gravatas de US 2 mil." Em "Rapina", publicado em 1995 pela Record, Sant´Anna traçava um paralelo entre as operações do mercado e as atividades de traficantes e seqüestradores cariocas. "Na verdade, 'Rapina' tem uma notável coincidência, como eu fiz questão de publicar na apresentação do livro, com fatos e pessoas reais. Muita gente se reconheceu no romance", diz, rindo, Sant´Anna, que não ambienta mais suas histórias no universo corporativo. "O público exige que o autor se repita, mas eu não quis ficar preso ao mesmo nicho." Atualmente, Sant'Anna trabalha em seu terceiro livro de não-ficcção, este sobre o atentado ao World Trade Center.

Ficar marcado como um escritor do gênero "corporative thriller" não agrada Joseph Finder, autor de "Paranóia" e "O Executivo", recém-lançado no Brasil pela Rocco. Ele costuma repetir, em entrevistas, que escreve apenas sobre pessoas comuns e seus empregos, utilizando pesquisas detalhadas sobre os ambientes em que as tramas se desenvolvem. Em "Paranóia", um jovem executivo faz espionagem industrial e se angustia por ter que ganhar a confiança de pessoas que considera decentes, até descobrir que a falta de escrúpulos é natural num mundo competitivo. O protagonista de "O Executivo" dirige uma empresa da qual uma pequena cidade inteira depende e sofre problemas de consciência por ser obrigado a despedir boa parte de seu pessoal.

A humanização desses personagens, às vezes homens sem grande cultura, como o executivo de "Paranóia", que não tem a menor idéia a respeito de Sammy Glick, a quem é comparado por um colega, passa também por uma redução das peripécias sexuais dos protagonistas. O diretor de empresas do "Executivo" amarga um celibato de mais de ano, desde que enviuvou. Algo impensável para os personagens de Harold Robbins, como o anti-herói Jonas Cord, que não hesita dividir os travesseiros com a própria madrasta na véspera do enterro do pai.

Outro aspecto que passou por significativa mudança nos thrillers é o papel das mulheres nas tramas. Embora ainda continuem mencionadas enquanto objeto de desejo dos homens, elas são apresentadas como profissionais de carreira estabelecida, que não necessariamente utilizam o sexo para obter vantagens. Por vezes, ainda são relegadas ao papel de predadoras sexuais, como a vilã de "Revelação", de Michael Crichton, que acusa um concorrente de assédio sexual. Stephen Frey, que concilia as atividades literárias com a administração de uma corretora de valores, e que já foi vice-presidente de um banco, escolheu uma executiva que perdeu a guarda do filho pelo excesso de dedicação ao trabalho como protagonista de "O Sócio". Uma escolha acidental, já que, como o autor admite, precisava de um interesse romântico para o "sócio".

Admirador de John Grisham, detalhista ao extremo, Frey descreve didaticamente o comportamento no mundo corporativo e, como Joseph Finder, critica veladamente a falta de cultura e a ostentação da riqueza por meio de Porshes ou BMWs. Hábitos como consumo de drogas são mostrados como marca de fraqueza de caráter ou prova da vilania dos personagens. Adaptados aos tempos atuais, heróis ou heroínas acabam decepcionados com os parceiros amorosos que porventura encontram ao longo das histórias, preferindo permanecer sozinhos, enquanto se dedicam ainda mais aos negócios e - até com desvelo - às famílias.

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