3.10.06

Valor Econômico - Entrevista Hélio Jaguaribe

Marginalidade, um risco nacional

Por Olga de Mello, para o Valor
09/06/2006

Um país decepcionado com a corrupção na política, que sofre os efeitos de um crescimento insuficiente, sem projetos eficazes para reduzir as gritantes diferenças sócio-econômico-culturais de sua população, e que teve sua maior cidade paralisada pela ação comandada por bandidos, há duas semanas, precisa reagir imediatamente para recuperar sua capacidade de investimento. Uma dessas ações urgentes seria analisar a possibilidade de legalização do consumo de drogas, diz o cientista político Helio Jaguaribe, que defende a descriminalização de substâncias de uso proibido há mais de uma década.

Nelson Pérez/Valor "Este é um país em que os salários de professores são inferiores aos de empregadas domésticas", indigna-se Helio Jaguaribe, cientista político e membro da ABL

Fundador do PSDB, ocupante da cadeira de número 11 da Academia Brasileira de Letras (ABL), este carioca de 82 anos é critico do modelo neoliberal incorporado pelo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, "um homem de bem", que, pela sinceridade transmitida em seu discurso, levou o país a aceitar a tese de que ele nada sabia sobre a corrupção "nos moldes dos antigos bolchevistas soviéticos", na qual estão envolvidas muitas estrelas do PT. Amante de música clássica, "de Vivaldi a Wagner", Helio Jaguaribe é um cumpridor de hábitos metódicos, que considera o segredo de uma vida inteligente: "Assim sobra mais tempo para pensar". Levanta-se, de segunda a sexta-feira, às 6h30, para fazer uma caminhada de 4 quilômetros. De manhã, vai para o Instituto de Estudos Políticos e Sociais, que ocupa um casarão em uma rua silenciosa do Horto, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. À tarde, Jaguaribe prefere trabalhar em casa, exceto às quintas-feiras, quando participa das sessões da ABL. Foi em seu escritório no Instituto, no qual as instalações amplas abrigam estantes repletas de livros de economia, política e ciências sociais, que ele recebeu o Valor.

Valor: O Brasil tem condições de competir economicamente com outros países emergentes, como a Rússia, a China, a Índia?

Helio Jaguaribe: O Brasil não é mais emergente há tempos. Hoje, é apenas subdesenvolvido. O país ficou preso no discurso neoliberal e mal consegue crescer acima de 2% ou 4%.

Valor: Em que o Brasil errou?

Jaguaribe: Continuamos um país com aspirações de uma sociedade de bem-estar, nos moldes do norte da Europa, e salários muito abaixo do que se recebe naqueles países. É a velha máxima: o Brasil tem impostos suecos e serviços públicos angolanos. Taxas de juros altas, impostos altos, mas uma educação pública ainda inadequada para toda a população. E a educação é a base de tudo. Existe uma correlação linear entre o nível de vida e a miséria. Este é um país em que os salários de professores são inferiores aos de empregadas domésticas.

Valor: Quais mudanças levariam ao crescimento econômico do país?

Jaguaribe: De um lado, precisamos de uma drástica redução da taxa de juros e de uma política econômica que restrinja o crédito para o consumo, mas que o oriente para a produção. É necessário substituir este modelo neoliberal ao qual o governo atual se adaptou por um projeto desenvolvimentista não populista, permitindo que os recursos públicos excedentes sejam encaminhados para projetos sociais. Ao mesmo tempo, ou reduzimos as diferenças ou o Brasil será um país marginal. Quase todas as metrópoles brasileiras estão cercadas por bolsões de miséria. Nesses anéis de marginalidade o narcotráfico buscou refúgio. A situação atual ultrapassa o controle policial.

Valor: O combate ao narcotráfico seria, hoje, um problema político?

Jaguaribe: É necessário reconhecer que o mundo perdeu a guerra contra as drogas. A Lei Seca, nos Estados Unidos, só fortaleceu as gangues de contrabandistas na década de 1920. Precisamos decidir o que é mais grave: o consumo controlado das drogas ou a convivência entre os chamados mocinhos e bandidos nessa disputa. Naturalmente, uma medida dessa ordem não poderia ser tomada isoladamente, mas em conjunto com outros países da América do Sul, precedida por um amplo debate científico. A descriminalização da droga modificaria o quadro atual, o absurdo de termos supermilionários sob a vigilância de agentes penitenciários que sobrevivem com salários baixíssimos. Os traficantes estão protegidos das facções inimigas em fortalezas seguras, guardados por policiais pobres. Por sua vez, esses policiais pobres vivem em favelas, onde são perseguidos pelos traficantes que dominam essas áreas.

Valor: Como levar a população marginalizada, então, à produtividade e melhores condições de vida?

Jaguaribe: Precisamos de uma reforma urbana, de reestruturar as cidades e incorporar as populações marginais, criando ocupações para alguns, realocando outros em suas regiões originais. Ocupações que só podem ser inventadas pelo Estado, com algo como brigadas de trabalho. O Brasil necessita de reformas em suas estruturas urbanas, no controle das drogas, na educação e na política financeira. Além disso, deveria haver mudanças no sistema eleitoral e partidário. Não há conexão real entre os eleitos e o eleitorado. O voto distrital misto eliminaria essa distância. Outras modificações seriam a exigência de fidelidade partidária até o fim do mandato e uma fiscalização rigorosa dos partidos de aluguel, que só enfraquecem o sistema partidário.

Valor: As denúncias de corrupção dentro do PT abalaram a figura do presidente da República?

Jaguaribe: O Brasil tem uma taxa de corrupção pública elevadíssima, mas o PT inaugurou uma forma diferente de corrupção, semelhante ao que praticava o partido bolchevista na União Soviética - a subtração de bens públicos em nome de um projeto partidário, o que é execrável. Esse assalto não vai derrotar Lula, que será reeleito, mas vai derrotar o PT, o partido que tinha a bandeira da honestidade, que cumpriu uma grande tarefa histórica. Graças ao PT, as desigualdades sociais, a gigantesca percentagem de excluídos, foram canalizadas para reclamar democraticamente suas causas. O PT consolidou nossa democracia, mas, ao se aproximar do poder, quis tornar-se absoluto. Lula é um grande mito e por isso resiste à crítica. Dentro do simbólico, ele é o filho de um cortador de cana, um operário que chegou a presidente da República. Ele compensa com sua inteligência privilegiada a falta de uma educação sistemática. É um homem de bem, que consegue transmitir no discurso sua sinceridade e seriedade. Por isso, o país aceita a tese de que ele não sabia de nada sobre a corrupção.

Nenhum comentário: