12.2.10

Valor Econômico - Música


Martinho da Vila faz samba requintado para a Unidos
Olga de Mello, para o Valor, do Rio
12/02/2010

Se a Vila Isabel de Noel Rosa não pretendia "abafar ninguém", apenas mostrar que fazia samba também, a Unidos de Vila Isabel deixa de lado a falsa modéstia do autor de "Palpite Infeliz" para festejar o centenário de nascimento do seu compositor mais celebrado na segunda-feira de Carnaval, embalada pela requintada melodia composta por Martinho da Vila. O desfile com o enredo "Noel: a Presença do Poeta da Vila" provavelmente será a mais exuberante das homenagens ao compositor, que, até dezembro, terá sua vida e obra revistas em livros, discos, filmes, shows e debates por todo o país.

Chega agora às livrarias "O Morro e o Asfalto no Rio de Janeiro de Noel Rosa" (Editora Aprazível), do jornalista João Máximo. Classificado pelo autor como "um guia para a visita ao Rio por meio das letras de Noel", o livro enfoca as transformações da cidade entre 1910 e 1937, abordando com fotografias da época os aspectos culturais e políticos. "Quis mostrar festas, o botequim, a boemia e, sobretudo, a influência dos compositores do morro sobre Noel", explica o jornalista, autor, com o músico Carlos Didier, de uma renomada biografia de Noel Rosa que a Universidade de Brasília lançou na década de 90.
As mudanças físicas e culturais da cidade também estarão em "O Rio de Noel", de André Diniz, que a Casa da Palavra lançará no segundo semestre. "Noel era como um Baudelaire, um 'flâneur', um grande observador da cidade, que escrevia sobre as diferentes vozes que ouvia. Ele andava por todo o canto, saía da Vila [Isabel] e ia dormir no Morro do Andaraí", conta Diniz. "Esse comportamento é impensável para um jovem da atualidade. Um garoto do Salgueiro não pode circular pelo samba na Mangueira. O samba não tem mais esse poder universalista nem é o porta-voz da cidade, que no tempo de Noel se associa à música."
Renovar a integração de asfalto e morro, que teve em Noel Rosa um de seus principais elos, foi a intenção da diretoria da Unidos de Vila Isabel, que convidou o economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Lessa a montar mesa-redonda sobre samba, Noel Rosa e futebol antes de um de seus ensaios, para os componentes da escola, na semana passada. Segundo o presidente da Vila, Wilson Vieira Alves, parte dos integrantes da agremiação, principalmente os mais jovens, pouco conhece Noel Rosa. "Já passamos o filme 'Noel, o Poeta da Vila' [de Ricardo van Steen] para que todos entendessem o que a escola vai apresentar no desfile."
Para Lessa, o debate era mais interessante para os expositores - o músico Rodrigo Lessa, o historiador Raul Milliet, o jornalista Nelson Moreira e o pesquisador Carlos Didier - do que para quem assistisse a ele. "A universidade sempre estuda o Carnaval, mas com muita distância, sem integrar-se a ele." O intercâmbio entre o mundo de Noel e a academia sai em publicação ainda neste semestre da editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), em parceria com a gravadora Biscoito Fino. Coordenado por Júlio Diniz, do departamento de letras da universidade, o livro terá artigos de professores da instituição sobre Noel na cultura urbana, acompanhado por um CD com canções pouco conhecidas do compositor, interpretadas por Martinho da Vila e músicos que se apresentam na Lapa. "O disco vai juntar o sambista veterano com esses jovens que cultuam Noel, o primeiro grande poeta da música brasileira, com letras sofisticadas para melodias riquíssimas", diz Diniz.
Ao lado de lembranças destinadas ao público infantil, como a publicação de "O Menino Noel", peça de Karen Aciolly que a Rocco lança no segundo semestre, há homenagens ao compositor que dificilmente ocorreriam em sua época. Em dezembro, ao vencer a disputa pela presidência da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vilaça anunciara que 2010 seria o Ano de Noel Rosa, a exemplo de comemorações promovidas pela entidade em torno de centenários de nascimento ou morte de outros músicos - tanto eruditos, como Heitor Villa-Lobos, quanto sambistas, como Ataulfo Alves. Afirmando que Noel era "o acadêmico do samba, o emblema da poesia cantada", em janeiro, Vilaça entregou a medalha da ABL a Wilson Vieira Alves, prometendo festa nos salões da Casa de Machado de Assis, em 11 dezembro, dia do nascimento do compositor.
Citado por outras escolas de samba e pela Vila Isabel em diversos sambas-enredo, esta é a primeira vez em que Noel Rosa é o tema de um desfile no Grupo Especial, observa o pesquisador Alberto Mussa, autor, em parceria com Luiz Antônio Simas, de "Samba de Enredo, História e Arte" (Civilização Brasileira, 240 págs., R$ 34,90). Em destaque, para Mussa, está a complexidade do samba composto por Martinho da Vila.
"Esse é um samba de melodia única que não segue a fórmula atual, de empolgar a multidão de espectadores. Os sambas de enredo atuais sempre buscam levar o sambódromo ao delírio, a explodir em animação", explica Musa. Para ele, a música de Martinho da Vila tem uma cadência própria, mais afinada com as disputas das escolas de samba tradicionais, que procuravam riqueza melódica em belas melodias, "sem se importar com o arrebatamento de quem assistia ao desfile".
Com 3,5 mil componentes, 31 alas, oito carros, um tripé e oito setores, a Unidos de Vila Isabel conta a vida de Noel Rosa, sua trajetória artística e os acontecimentos políticos de sua época, mostrando a Revolta da Chibata e a Revolução de 1930. "Tenho certeza de que o espírito de Noel vai baixar na avenida, pois ele não vai querer perder a própria festa. A nossa homenagem ao Noel não acaba depois do Carnaval. O ano inteiro queremos promover fóruns que mostrem sua importância para a valorização do samba e das comunidades que o produziam", informa Wilson Aires Alves.
Bem de acordo com a informalidade cultuada por Noel, ainda são poucas as outras comemorações de seu centenário que têm data e local definidos. A programação está aberta em boa parte dos espaços culturais cariocas, que já têm propostas de projetos celebrando Noel. A Prefeitura do Rio, por meio da Secretaria de Cultura, garante os festejos, sem precisar, no entanto, quando ou o que fará. O violonista Luís Felipe de Lima já acertou para o fim do ano um ciclo Noel Rosa no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. A data, no entanto, continua em aberto.
"O aniversário de Noel é em dezembro, o que permite inclusão nas agendas ao longo do ano", afirma o cavaquista Henrique Cazes, que negocia em um desses locais a montagem das três óperas radiofônicas de Noel, projeto que assina com o pianista Tim Rescala. Em janeiro, Cazes e a cantora Cristina Buarque apresentaram na Sala Baden Powell o show "Sem Tostão", com músicas de Noel, já em referência ao centenário. Com dez álbuns e cinco livros dedicados a Noel, Cazes deve ainda relançar um disco de canções inéditas do compositor, distribuído em 1983 como brinde natalino de uma empresa.
Passadas as comemorações do Ano de Noel, sua presença permanecerá além das rodas musicais. Em 2011, o jornalista Sérgio Cabral lança, pela Companhia Editora Nacional, a biografia da cantora Aracy de Almeida, uma de suas principais intérpretes. "Noel criou o novo mundo da música brasileira. Existe uma música antes dele e outra que vem depois. Ele é fundamental na história de Aracy, sua principal intérprete porque imprimia ao samba a sofisticação e o encanto que Noel pedia."

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