22.11.09

Valor Econômico - Literatura

Letras econômicas: Shakespeare foi muito mais que dramaturgo e poeta. Fez fortuna também como empresário, como revela novo livro de Gustavo Franco.
Ter ou não ter, eis a questão

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
20/11/2009
Empresário bem-sucedido que soube aproveitar a notoriedade obtida pelo arrojo de sua criação artística, o inglês William Shakespeare combinou como poucos o talento literário ao tino comercial. Sua incursão no ramo do entretenimento permitiu que deixasse à família valiosas terras e uma herança em espécie correspondente a 14 milhões de libras atuais, compatível com o padrão de um superstar contemporâneo. A estimativa sobre a fortuna de Shakespeare, que legou às filhas, no testamento, a quantia de 1,5 mil libras, é do economista Gustavo Franco, que apresenta um aspecto pouco conhecido no Brasil sobre a vida empresarial do dramaturgo em "Shakespeare e a Economia" (Zahar, 232 págs., R$ 36,00).



Para chegar aos valores atualizados da fortuna amealhada por Shakespeare, Franco não se limitou a multiplicar a quantia expressa no testamento pela inflação que cobriu o período da morte do escritor, em 1616, até os dias de hoje. "Em 400 anos, não podemos olhar apenas o índice inflacionário. Há que se considerar outros porcentuais de elevação do custo de vida, incluindo o PIB", diz o economista. Levando em conta apenas a inflação de quatro séculos, Shakespeare teria deixado somente 78 mil libras para a família. No entanto, as 1,5 mil libras que constam no testamento surgem como uma soma milionária se comparadas aos salários anuais de artesãos e professores, que ficavam entre 15 e 20 libras.

"Conversei com muitos especialistas em Shakespeare, que confirmaram que ele era rico para a época, quase um aristocrata. Sua fortuna poderia ter sido multiplicada, mas as filhas, como as mulheres da época, dependiam dos investimentos que os maridos fariam. Uma delas era casada com um homem responsável, porém não tiveram filhos. A outra fez um péssimo casamento", observa Gustavo Franco.

Os direitos autorais das 37 peças e 154 sonetos de Shakespeare poderiam gerar uma boa renda anual para seus descendentes, caso sua obra não fosse de domínio público. Em 2004, a revista "Forbes" calculou que herdeiros de William Shakespeare dividiriam uma renda anual mínima de U$ 15 milhões em royalties, apenas com a venda comercial de seus livros pelo preço de US$ 1 o exemplar. Isso sem computar as cópias compradas por escolas e bibliotecas nos Estados Unidos, onde, naquele ano, haviam sido vendidos 657 mil unidades de Shakespeare.
Embora pouco se saiba de concreto sobre a vida particular de Shakespeare, não houve dificuldade em encontrar material biográfico. "É provável que ele seja o escritor mais estudado pela humanidade", cogita Franco. Afinal, segundo o crítico Harold Bloom, a única personalidade mais citada no Ocidente do que o personagem Hamlet é Jesus Cristo. Com traduções em 119 línguas, entre elas a linguagem de sinais para surdos e Klingon - o idioma de alienígenas da série de televisão "Jornada nas Estrelas" -, Shakespeare é o autor com maior número de peças levadas para o cinema, algo superior a 350 versões fiéis ou baseadas em suas criações.

Da extensa bibliografia consultada surge o homem de negócios que soube se adaptar às transformações de uma época em que o capitalismo engatinhava. O teatro era a principal, senão a única, diversão da população de Londres, onde viviam, em 1600, 250 mil pessoas. "Havia uma dúzia de teatros em Londres, todos funcionando cinco dias por semana. Às 14 horas, tocavam as trombetas, avisando que as sessões começavam. O teatro fazia parte da rotina dos londrinos, que lotavam as casas de espetáculo. Só o Globe tinha três mil lugares. A movimentação financeira que a atividade teatral proporcionava era imensa, mesmo sem patrocínios diretos", conta Franco.

Segundo o estudo do economista, entre 1580 e 1648, foram montadas cerca de três mil peças na Inglaterra. Só 230 desses textos sobreviveram, entre eles 37 de William Shakespeare. As temporadas eram curtas. Os registros indicam que cada peça ficava em cartaz, em média, por dez dias, e as companhias faziam cerca de 200 apresentações por ano. Diretor e sócio de dois teatros, o Globe e o Blackfriars, Shakespeare ganhou muito dinheiro, comprando vastas propriedades de terra e investindo em cotas de produção de trigo, cereais e lã, entre outros produtos. Esse patrimônio incluía a New Place, a segunda maior residência de sua cidade, Stratford-upon-Avon, onde passou seus últimos anos.

A vida confortável de um autor que enriqueceu do próprio trabalho não tirou de Shakespeare a consciência crítica quanto à "hipocrisia reinante nos primeiros tempos do capitalismo", acredita Franco. Em "O Mercador de Veneza", Antônio, o personagem do título, faz fortuna com expedições de navegação. "Antônio explora a pirataria, a base onde se estruturava a recém-criada Companhia das Índias. Sua atividade é digna, mas a de Shylock, o judeu agiota, não. Ou seja, traficar escravos não é um pecado, cobrar juros, sim."

A intenção inicial de Franco era escrever um prefácio ao estudo lançado em 1931 pelo economista americano Henry W. Farnam sobre os aspectos de economia no teatro de Shakespeare. "A análise de Farnam é encantadora. Eu queria fazer uma introdução porque ninguém aprende Shakespeare no colégio nem conhece o contexto sociopolítico de seu tempo. À medida que pesquisava, achava os mais diversos registros da vida financeira, alguns detalhando os custos de produção de espetáculos, além da contabilidade dos teatros que Shakespeare administrou. Foi quando a editora Cristina Zahar propôs juntar no mesmo volume o texto de Farnam e o meu", conta o economista, cujo estudo recebeu o título de "A Economia de Shakespeare - O Retrato do Ca pitalismo quando Jovem".

Este é o terceiro livro de Gustavo Franco abordando a economia em textos de literatos. O primeiro reunia ensaios de economia do poeta Fernando Pessoa; o segundo, crônicas de Machado de Assis sobre as transformações na economia brasileira com o fim da monarquia e o início da República. Debruçar-se sobre a produção dos escritores foram experiências absorventes, afirma o economista. "Virou algo para a vida inteira. Não consigo mais me livrar de Pessoa ou de Machado. E Shakespeare é um colosso",completa Franco, modesto quanto a seu conhecimento sobre o dramaturgo: "Não li todas as peças; vi algumas encenações e muitos filmes, que ajudaram muito a compreender toda a sua criação. Afinal, o texto de Shakespeare foi escrito para ser falado, não para a leitura".

Um comentário:

Clotilde Tavares disse...

Cheguei ao seu blog por acaso, porque tenho um alerta do Google que me avisa de tudo que é publicado sobre Shakespeare (uma paixão!). Pois bem: fiquei encantada com os textos, já li alguns mas quero ler o blog TODO, correndo o sério risco de atrasar meus compromissos previstos para esta semana... Irei lendo e comentando. E vou twittar seu link.