25.8.08

Valor Econômico - Livros

Pode ser útil observar Nero e Calígula

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
21/08/2008

Roma S.A.

A primeira corporação mundial nasceu como uma pequena empresa familiar, que, através de planejamento racional, pôde estender e manter sua sua influência sobre povos de todo o planeta. Assim é a "Roma S.A." descrita na irreverente análise do escritor americano Stanley Bing sobre os primeiros 1.200 anos de uma história repleta de líderes neuróticos, disputas sangrentas pelo poder e incompetentes amalucados alçados a altos cargos por questões políticas ou laços familiares. Para o autor, Roma permaneceu como a única cidade ocidental a atravessar milênios no centro dos acontecimentos políticos e sociais internacionais graças à capacidade de se reinventar e promover uma reorganização corporativa no século IV, com a criação da Igreja Católica Romana, que hoje conta com mais de um bilhão de adeptos no mundo inteiro. "Roma percebeu que o cristianismo poderia fornecer a força emocional e espiritual necessária para manter vivo o espírito romano até hoje", disse Bing em entrevista ao Valor.

O irônico Bing surgiu há cerca de duas décadas como pseudônimo do escritor, enquanto fazia carreira na rede de televisão CBS, da qual é vice-presidente executivo de comunicação, sob a identidade, real, de Gil Schwartz. Hoje, ele escreve uma coluna na "Fortune", enfocando o universo corporativo com muito sarcasmo e ceticismo, sem acreditar que seus próprios textos sejam vistos como guias de gestão. "Quem tem poder, geralmente, não se interessa pelas outras pessoas. Líderes, gerentes, executivos até podem se inspirar com a leitura de grandes exemplos de brutalidade, egoísmo e sucesso, mas fazem tudo de sua própria maneira, conforme determinam suas personalidades rígidas, controladoras e infantis. Existe uma loucura institucionalizada e o comportamento irracional é comum entre quem tem autoridade. Não é difícil encontrar descendentes de Calígula nas primeiras páginas dos jornais do mundo todo."

A vocação corporativa de Roma, afirma Bing, mostra-se desde a fundação lendária pelos gêmeos Rômulo e Remo, por volta de 700 a.C. Segundo o autor, todas as corporações começam com mitos, apresentando seus criadores sendo amamentados por uma loba ou montando computadores pessoais em uma garagem na Califórnia, como Bill Gates e Nolan Bushnell. "Antes de Roma, houve diferentes organizações sociais, cidades e exércitos, mas só Roma tem as primeiras operações corporativas. Um escritório central delegava poderes que fluíam diretamente da alta gerência para as linhas de operação no campo. Os povos conquistados eram integrados à empresa, agraciados com uma nova cidadania por determinação dos quadros superiores. Roma permitia operações locais para a geração e manutenção de receitas associadas, além de tomar parte do lucro operacional para beneficiar o centro corporativo. Outras civilizações conquistaram territórios, queimaram e saquearam cidades inimigas. Somente Roma transformou o mundo em um gigantesco estado corporativo, com uma estrutura definida, recriando-se diversas vezes até se transformar em uma organização religiosa, mantendo sua sede na cidade", acredita Bing.

A modesta empresa tocada por dois irmãos que se odiavam cresceu com a nomeação de uma diretoria - o Senado - e a ascensão de líderes qualificados para administrar os negócios. Nos últimos tempos da República, diz Bing, surgiu um novo tipo de líder, o magnata, que cria uma cultura própria, imprimindo mudanças com muita criatividade, para garantir o poder.

"Há pessoas cujos nomes são sinônimos de suas empresas, que não têm escrúpulos em derrubar quem ameace sua autoridade. Geralmente, são extremamente criativas e dinâmicas. Stálin era um magnata, enquanto Putin não passa de um burocrata poderoso. George W. Bush é apenas útil para a classe que o levou àquele cargo. Tem momentos de irracionalidade, mas não é criativo. Robert Mugabe é um magnata, como Steve Jobs, da Apple, Bill Gates da Microsoft, Louis Gerstner, da IBM.

Esses homens inventam, transformam, só obedecem a suas próprias leis, vivem de acordo com parâmetros que eles próprios traçam. São os césares da atualidade", diz Bing, que declara seu interesse por regimes totalitários - e a possibilidade de explorar situações ridículas que eles proporcionam. Em um próximo livro, ele gostaria de analisar o modelo de gestão firmado por Stálin: "Era um sociopata com um senso de humor mordaz, de quem era perigoso ser amigo ou inimigo. Ele se redefinia constantemente e tinha características que reconhecemos em mais líderes mundiais e altos executivos do que gostaríamos de admitir. Stalin é um modelo até hoje seguido em boa parte do mundo."


14.8.08

Revista Aplauso - Teatro Edição 87

Duas matérias da revista, na qual assino todas as reportagens.



As Centenárias
Novo texto de Newton Moreno marca o retorno das amigas Marieta Severo e Andrea Beltrão ao palco do Teatro Poeira, sob direção de Aderbal Freire-Filho

Duas mulheres, uma mais velha, outra mais jovem, ganham a vida encomendando corpos e chorando mortos. Um trabalho lúgubre. De forma alguma, afirma Marieta Severo, que interpreta uma das carpideiras de As Centenárias, peça que volta a reuni-la, no palco do Teatro Poeira, com a amiga e sócia Andréa Beltrão. “As carpideiras são contratadas para dar um brilho nos velórios. E essas duas que interpretamos conseguem até passar a perna na morte”, diz a atriz.

Mais uma vez, Aderbal Freire Filho está dirigindo Marieta e Andréa. “Formamos um núcleo de trabalho, os três. É o núcleo Poeira, que inclui aí o cenógrafo Fernando Mello e o iluminador Maneco Quinderé. Sempre gostei de trabalhar com equipes. Fiz quatro peças do Naum Alves de Souza com o mesmo grupo, o mesmo elenco. É a situação ideal, todos vivem afinados, em sintonia, não existe aquele desconforto do primeiro ensaio, os códigos já estão decifrados, diálogos fluem”, diz Marieta.

As duas atrizes inauguraram o Poeira, há dois anos, com uma montagem de Sonata de Outono, dirigida por Aderbal. Para subirem ao palco novamente, queriam um texto leve, alegre, bem distante da complexidade emocional da peça anterior. Convidaram, então, Newton Moreno, autor da aclamada Agreste, para criar uma peça especialmente para elas. Inspirado na amizade das duas, nasceu As Centenárias. Segundo Marieta Severo, o pernambucano Newton, apesar de viver há 17 anos em São Paulo, é fiel às raízes nordestinas, além de conhecer profundamente a cultura popular, tratando a morte sem qualquer respeito, recriando um clássico da cultura popular, que é o desafio, o duelo com o destino.

“Essa intimidade com a morte, a mistura do mundo real ao fantástico, com aquele sabor brasileiro, é deliciosa. É interessante ver como o surreal está inserido no cotidiano dessas pessoas e mostrar também um universo desconhecido para quem vive nos grandes centros. As carpideiras não são apenas importantes para os rituais fúnebres, mas têm uma aura mística. Elas são as eleitas, com um dom especial para encomendar os mortos. Ainda hoje, em muitos recantos do interior do Brasil, elas têm essas funções”, conta Marieta.

Em “As Centenárias”, a jovem Zaninha (Andréa Beltrão) admira Socorro (Marieta Severo) e quer seguir a carreira de carpideira, mas precisa passar pela maternidade, antes, o que a fará temer perdas e respeitar a morte. No entanto, depois que Zaninha abraça a função, ao lado de Socorro, e tem a vida de seu filho ameaçada, as duas mulheres conseguem, ardilosamente, enganar a morte. Antes disso, encontram diversos personagens, entre eles o cangaceiro Lampião, um coronel traído e uma viúva inconsolável. Os diferentes personagens são interpretados pelas duas atrizes, que dividem as cenas com o ator Sávio Moll e diversos bonecos que elas próprias manipulam. Os bonecos foram criados por Miguel Vellinho, que as ensinou as técnicas de manipulação. Sávio Moll manipula a boneca “Mulher de Luto”, faz a Morte e ainda toca rabeca, acompanhando as incelenças, os cantos fúnebres entoados pelas carpideiras. A ação transcorre em torno de um caixão, ponto central do cenário criado pelos cenógrafos Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque. No fundo do palco, presos a uma enorme grade, estão cerca de 240 bonecos, sendo 60 mamulengos confeccionados por Mestre Tonho, de Olinda. Os outros 180 foram criados pela professora em arte de bonecos Ivete Dibo, que ainda fez máscaras para compor o cenário, que tem a forma circular, similar a um picadeiro de circo.

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O Bem-Amado
Marco Nanini vive o vilão que aprendemos a amar


Corrupção, muita retórica e poucas realizações. O que poderia ser um resumo da carreira de um político brasileiro também serve para definir um dos maiores anti-heróis da dramaturgia do País. O fascinante vilão criado por Dias Gomes em 1962 está de volta. Depois de ser apresentado nos palcos por Procópio Ferreira e popularizado pela interpretação de Paulo Gracindo na novela O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu renasce, desta vez na pele de Marco Nanini, no Teatro das Artes.

“Odorico não envelhece, continua atual, é perene”, diz Nanini, que não quis assistir a fitas com capítulos da novela ou do seriado que Paulo Gracindo estrelou nos anos 80 para evitar influências na recriação do personagem. Sem qualquer referência, portanto, Odorico se impôs gradualmente para Marcos Nanini. “Primeiro, surgiu um convite informal para fazê-lo em um filme. Depois veio um outro convite informal, desta vez para estrelar o piloto de um novo seriado sobre o Bem-Amado. Foi então que achamos oportuno montar a peça, que tem um texto delicioso, engraçado e bastante contemporâneo”, conta Nanini.

Síntese da Farsa

Da mesma forma que Dias Gomes, que ao adaptar sua peça para a televisão incorporou situações que o Brasil vivia na década de 70, a nova ambientação da peça traz sinais do mundo contemporâneo nesta versão assinada por Cláudio Paiva e Guel Arraes, com direção de Enrique Diaz. Que não se esperem, no entanto, alusões a escândalos administrativos da atualidade. “Não queremos focar a ação em críticas a partidos ou a políticos. A figura de Odorico prima pela síntese da farsa, ele já simboliza muitos elementos sem haver necessidade de estar ligado ao mundo real”, diz Nanini, que se declara feliz em participar de mais uma comédia. “A comédia me acompanha. Não é que eu me afaste do drama, mas é bom trabalhar um texto tão divertido”.

Embora não tivesse uma relação próxima com Dias Gomes, Marcos Nanini participou tanto do primeiro quanto do último trabalho escrito pelo dramaturgo para a televisão. Na década de 60, Nanini foi chamado, com outros estudantes de teatro para uma cena de duelo de espadachins na novela A Ponte dos Suspiros, adaptação de um dramalhão histórico italiano, que o escritor assinava sob o pseudônimo de Stela Calderon. “Estavam à procura de quem soubesse um pouco de esgrima. Lá fui eu, com outros colegas, fazer figuração. Acho que eu morri na cena”, lembra Nanini, que, mais tarde, conheceu Dias Gomes, que, em 1998, adaptou para a televisão o romance Dona Flor e seus Dois Maridos – em parceria com Marcílio Moraes e Ferreira Gullar. “Desta vez, eu era Teodoro, o segundo marido de Dona Flor”, conta Nanini.

Quem não se lembra?

“Cachacistas juramentados" e "donzelas praticantes"; “Chamem a imprensa escrita, falada e televisada”; "Vamos botar de lado os entretanto e partir pros finalmentes".

Os termos e frases cunhados por Odorico Paraguaçu tomaram conta do Brasil em 1973, quando foi ao ar a primeira telenovela a cores do País. É difícil definir o caráter de Odorico Paraguaçu, um “coronel” do interior, que domina a fictícia cidadezinha baiana de Sucupira, enquanto almeja chegar ao governo do estado, apresentando como grande obra de sua gestão o cemitério municipal – que não pode ser inaugurado porque ninguém morre na cidade. Por isso, ele se regozija com a chegada do matador Zeca Diabo, que cumpre promessa ao Padre Cícero de recuperar-se e abandonar a vida de pistoleiro. Em Sucupira, outras figuras do universo de Dias Gomes ficaram célebres por causa do Bem-Amado, como Dirceu Borboleta e as três irmãs Cajazeira, as solteironas apaixonadas pelo prefeito.

Revista de Teatro - SBAT

A Criação da Segunda Pele

Olga de Mello

Os figurinistas Ney Madeira e Marclo Pies falam das dificuldades do ofício e da magia de ver o ator vestir o figurino pela primeira vez

Nascidos e criados em Niterói na década de 60, Ney Madeira e Marcelo se espantam por nunca haver se ‘esbarrado’ na adolescência. Moravam em bairros próximos, pretendiam trabalhar em outras áreas – Ney cursou Arquitetura, Marcelo estudou Letras – e se mudaram para o outro lado da Baía de Guanabara na mesma época.

No estúdio de Ney Madeira, no terraço de um edifício de onde se divisa a Enseada de Botafogo, eles se encontraram pela primeira vez para falar sobre a criação de figurinos, atividade a que chegaram gradativamente, e que os apaixona, apesar da falta de estrutura que ainda enfrentam nas produções brasileiras – desde a lavagem errada de peças de roupa até a adaptação de roupas para diferentes atores, sem consulta a quem os criou.

“Somos heróis da resistência, o teatro brasileiro sobrevive por causa do amor de seus profissionais”, diz Ney Madeira, que também é professor de cenografia, cenotécnica e indumentária em universidades particulares. Com trabalhos em mais de 100 peças desde o início da década de 90, ele acumula indicações para prêmios tanto em cenografia quanto em figurinos. “Fica como cartão de visitas da gente. Ganhei prêmios logo que comecei, depois, não parei mais de ser indicado”, conta. A mais recente indicação foi pelo figurino da montagem de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Não pode se queixar de pouca atividade: “Este ano já foram sete peças, mal acabando um projeto, iniciando o seguinte”.

Marcelo Pies acumula com o teatro produções para cinema e publicidade e tem trabalhos expressivos no currículo, como “Tio Vânia” – indicada para o Prêmio Shell de melhor figurino em 2003 - e “Hamlet”, ambas dirigidas por Aderbal Freire-Filho. “Gosto de transitar em meios diferentes, mas é no teatro que percebemos as respostas imediatas ao que foi criado, não apenas por quem veste a roupa, mas com a reação da platéia”.

Para suprir as carências de um mercado onde não se encontram sequer zíperes em tamanhos diferentes, o jeito é abusar da criatividade. Cortinas se transformam em toalhas de mesa, colchas se transmutam em casacos. Os dois lamentam os orçamentos apertados das produções, que contam cada vez menos com patrocínio e garantem, com olhos brilhantes, que todos os esforços são compensados quando testemunham o momento em que um ator veste pela primeira vez o figurino e o personagem surge na cena.

Como foram seus primeiros passos profissionais?

Ney Madeira – Eu fazia Arquitetura na UFF e acabei entrando para um curso de cenários e adereços para teatro. Comecei a me interessar por teatro, cheguei a fazer formação de ator, mas era muito canastrão. Vim fazer cenário e figurino na CAL e na Martins Pena. Conheci, então a Lídia Kosowski, que foi minha madrinha em cenário. Com o tempo, comecei a fazer assistência da Lídia, montamos uma parceria e eu passei a fazer figurino. Virou uma dobradinha, a Lídia no cenário e eu nos figurinos. Hoje, eu atuo nas duas frentes. Divido o ateliê com a Lídia, mas trabalhamos separadamente, com clientelas diferentes. Continuamos muito amigos.

Marcelo Pies – Eu estudava Letras na UFRJ e comprava roupas da confecção Transfigura, da Cláudia Kopke e da Emília Duncan, que acabaram me chamando para trabalhar com elas. Emília e Cláudia me acolheram, foram minhas madrinhas. Quando a confecção acabou, embora minha intenção inicial fosse fazer moda, eu já estava acompanhando a Emília em criação de figurinos para publicidade e cinema. Só fui trabalhar com teatro em 1995, com “Cinco Vezes Comédia”, do Hamilton Vaz Pereira.

Trabalhar com criação de roupas hoje é muito mais fácil do que quando vocês começaram, não?

Ney Madeira – Não existia nada de material acessível, não havia cursos superiores de moda que criaram mercado para a literatura neste setor. A gente se atirava no abismo, pesquisando em livros, romances, crônicas.

Marcelo Pies – A nossa vida melhorou muito. Tem mais material importado, muitas revistas, caras, tem Internet. Antes, recorríamos a qualquer fonte de pesquisa, incluindo cinema.

Ney Madeira – Outro aspecto complicado era que as produções nunca davam as condições para fazer o trabalho que você havia criado. Isso fez com que eu me empenhasse muito para dar o melhor na confecção do figurino. Para suprir a carência das produções, eu ia lá, bordava, botava algo meu na roupa. Até hoje eu me dedico muito, o que acabou servindo para me abrir caminho no teatro. Não há melhor divulgação que um trabalho bem realizado. Dei sorte, também, porque minha primeira montagem amadora foi em 1989. Três anos depois, eu fui indicado a um prêmio Coca-Cola por uma montagem infantil de “Tartufo”. A indicação alavancou minha carreira no início. Fiz muito teatro infantil, um atrás do outro. Depois, vieram óperas, balés, peças para público adulto. Aqui, fazemos de tudo. Na Europa, nos Estados Unidos, tem gente que só faz figurino de ópera, de balé.

Qual é a principal dificuldade no trabalho de vocês?

Marcelo Pies – A falta de um local que reúna profissionais dedicados a teatro. A gente sai distribuindo encomendas por tudo quanto é lugar da cidade.

Ney Madeira – Só o (Teatro) Municipal tem costureiras e alfaiates contratados, porém eles são funcionários públicos, não viram a noite para entregar o material a tempo. Agora, são fantásticos. Ninguém faz “tutus” para balé melhor do que as costureiras do Municipal.

Marcelo Pies – Nos Estados Unidos até os teatros amadores das universidades têm ateliês de costura. Aqui não existem ateliês nem há renovação do pessoal especializado em costura para teatro. O teatro é artesanal, não é indústria como o cinema, a publicidade ou a televisão.

Ney – Com esta leva de musicais mais grandiosos, talvez comecemos a ter uma produção específica para teatro, com mais profissionais habilitados. Estamos sempre inventando a roda. Em Londres você pode escolher um jacquard e mandar produzir um tecido do século 18. Aqui não existe isso, temos que pintar, bordar, estampar sozinhos.

Como é o processo de criação de um figurino? Em que vocês pensam primeiro, no personagem, na história, no ator, no pedido do diretor?

Ney Madeira – Tem diretores que dizem “Não entendo de figurino, faz aí”. Isso é a pior relação possível. E há os que indicam caminhos. O bom diretor é o que consegue agregar a equipe e criar um conceito para o espetáculo em que todos vão trabalhar. Aquela pessoa que faz reuniões periódicas de criação e concepção, onde você cruza cenografia, figurinos, direção musical. São os melhores resultados. O que deixa a gente solto, sempre pode dizer: “Ih, não era bem isso que eu pensava”. Isso acontece pouco. Em geral, as pessoas adoram tudo. Tem gente que não consegue visualizar, nem ver desenho. Tem que mostrar o caminho. Tem aquele que encomenda. Eu quero isso. Você tenta criar, mas “não era isso o que eu queria”. São poucos. A maioria dá liberdade de criação. Sempre vai bater, porque a gente acompanha ensaio.

Marcelo Pies – O trabalho é de equipe. Se o ator não estiver feliz, não vai dar certo, se a luz não bater bem, vai estourar a cor, o figurino não parecerá bem. Eu nunca tive isso de nenhum diretor me dizer: é assim. Então, vou fazendo e mostrando as idéias. E nosso trabalho não se limita à criação da roupa, a mostrar como conservar os figurinos, mas também o de orientar a postura dos atores com algumas peças, ao uso de sombrinhas, xales, chapéus, perucas. Quem está com um vestido de cauda, por exemplo, precisa aprender a antes de se levantar, chutar a cauda para trás, como se fazia antigamente. Se a atriz não consegue, temos que adaptar o figurino às possibilidades dela.

Ney - É um trabalho que exige psicologia. Há casos específicos em que se o figurino compensa visualmente atores sem atributos físicos para compor determinados personagens.

Marcelo – A gente faz uma transfiguração mesmo e percebe uma nítida diferença nos ensaios quando eles vestem o figurino. Muda até o tom da voz.

A preferência de vocês é por trabalhar com figurinos de época. Por quê?

Ney Madeira – O figurino de época permite maior liberdade de criação, de interpretação. Às vezes, criamos uma estética particular do espetáculo com inspiração em algum lugar, alguma tendência, montando um universo teatral que não precisa, necessariamente, representar fielmente um período.

Marcelo Pies – Teatro é uma caixa preta de representação lúdica. É o sonho que fica possível. O ser fiel não interessa em teatro.

Ney Madeira – Teatro não tem foco, então, o figurino tem que aparecer e simbolizar o tempo todo em cena. Mas tudo depende do contexto, do momento. Quando eu fiz “Dolores”, ouvia a platéia de cabeças brancas comentando que já haviam usado aquele tipo de bolsa, aquele modelo de sapato. O figurino cria uma identificação do ator com o personagem e da platéia com a cena. A paixão das pessoas é que elas projetam o desejo do que surge naquilo exclusivo e especial que foi criado especificamente para um momento.

Quem é referência como figurinista para vocês?

Ney Madeira - A grande precursora é a Kalma Murtinho, uma desbravadora que fez muita coisa, abriu muito esse caminho para a criação no Brasil.

Marcelo Pies - Eu acho incrível o trabalho da Irene Sharaff, que fez o primeiro Sweet Charity do Bob Fosse na Brodway. Hoje ela é figurinista em Hollywood.