14.8.08

Revista de Teatro - SBAT

A Criação da Segunda Pele

Olga de Mello

Os figurinistas Ney Madeira e Marclo Pies falam das dificuldades do ofício e da magia de ver o ator vestir o figurino pela primeira vez

Nascidos e criados em Niterói na década de 60, Ney Madeira e Marcelo se espantam por nunca haver se ‘esbarrado’ na adolescência. Moravam em bairros próximos, pretendiam trabalhar em outras áreas – Ney cursou Arquitetura, Marcelo estudou Letras – e se mudaram para o outro lado da Baía de Guanabara na mesma época.

No estúdio de Ney Madeira, no terraço de um edifício de onde se divisa a Enseada de Botafogo, eles se encontraram pela primeira vez para falar sobre a criação de figurinos, atividade a que chegaram gradativamente, e que os apaixona, apesar da falta de estrutura que ainda enfrentam nas produções brasileiras – desde a lavagem errada de peças de roupa até a adaptação de roupas para diferentes atores, sem consulta a quem os criou.

“Somos heróis da resistência, o teatro brasileiro sobrevive por causa do amor de seus profissionais”, diz Ney Madeira, que também é professor de cenografia, cenotécnica e indumentária em universidades particulares. Com trabalhos em mais de 100 peças desde o início da década de 90, ele acumula indicações para prêmios tanto em cenografia quanto em figurinos. “Fica como cartão de visitas da gente. Ganhei prêmios logo que comecei, depois, não parei mais de ser indicado”, conta. A mais recente indicação foi pelo figurino da montagem de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Não pode se queixar de pouca atividade: “Este ano já foram sete peças, mal acabando um projeto, iniciando o seguinte”.

Marcelo Pies acumula com o teatro produções para cinema e publicidade e tem trabalhos expressivos no currículo, como “Tio Vânia” – indicada para o Prêmio Shell de melhor figurino em 2003 - e “Hamlet”, ambas dirigidas por Aderbal Freire-Filho. “Gosto de transitar em meios diferentes, mas é no teatro que percebemos as respostas imediatas ao que foi criado, não apenas por quem veste a roupa, mas com a reação da platéia”.

Para suprir as carências de um mercado onde não se encontram sequer zíperes em tamanhos diferentes, o jeito é abusar da criatividade. Cortinas se transformam em toalhas de mesa, colchas se transmutam em casacos. Os dois lamentam os orçamentos apertados das produções, que contam cada vez menos com patrocínio e garantem, com olhos brilhantes, que todos os esforços são compensados quando testemunham o momento em que um ator veste pela primeira vez o figurino e o personagem surge na cena.

Como foram seus primeiros passos profissionais?

Ney Madeira – Eu fazia Arquitetura na UFF e acabei entrando para um curso de cenários e adereços para teatro. Comecei a me interessar por teatro, cheguei a fazer formação de ator, mas era muito canastrão. Vim fazer cenário e figurino na CAL e na Martins Pena. Conheci, então a Lídia Kosowski, que foi minha madrinha em cenário. Com o tempo, comecei a fazer assistência da Lídia, montamos uma parceria e eu passei a fazer figurino. Virou uma dobradinha, a Lídia no cenário e eu nos figurinos. Hoje, eu atuo nas duas frentes. Divido o ateliê com a Lídia, mas trabalhamos separadamente, com clientelas diferentes. Continuamos muito amigos.

Marcelo Pies – Eu estudava Letras na UFRJ e comprava roupas da confecção Transfigura, da Cláudia Kopke e da Emília Duncan, que acabaram me chamando para trabalhar com elas. Emília e Cláudia me acolheram, foram minhas madrinhas. Quando a confecção acabou, embora minha intenção inicial fosse fazer moda, eu já estava acompanhando a Emília em criação de figurinos para publicidade e cinema. Só fui trabalhar com teatro em 1995, com “Cinco Vezes Comédia”, do Hamilton Vaz Pereira.

Trabalhar com criação de roupas hoje é muito mais fácil do que quando vocês começaram, não?

Ney Madeira – Não existia nada de material acessível, não havia cursos superiores de moda que criaram mercado para a literatura neste setor. A gente se atirava no abismo, pesquisando em livros, romances, crônicas.

Marcelo Pies – A nossa vida melhorou muito. Tem mais material importado, muitas revistas, caras, tem Internet. Antes, recorríamos a qualquer fonte de pesquisa, incluindo cinema.

Ney Madeira – Outro aspecto complicado era que as produções nunca davam as condições para fazer o trabalho que você havia criado. Isso fez com que eu me empenhasse muito para dar o melhor na confecção do figurino. Para suprir a carência das produções, eu ia lá, bordava, botava algo meu na roupa. Até hoje eu me dedico muito, o que acabou servindo para me abrir caminho no teatro. Não há melhor divulgação que um trabalho bem realizado. Dei sorte, também, porque minha primeira montagem amadora foi em 1989. Três anos depois, eu fui indicado a um prêmio Coca-Cola por uma montagem infantil de “Tartufo”. A indicação alavancou minha carreira no início. Fiz muito teatro infantil, um atrás do outro. Depois, vieram óperas, balés, peças para público adulto. Aqui, fazemos de tudo. Na Europa, nos Estados Unidos, tem gente que só faz figurino de ópera, de balé.

Qual é a principal dificuldade no trabalho de vocês?

Marcelo Pies – A falta de um local que reúna profissionais dedicados a teatro. A gente sai distribuindo encomendas por tudo quanto é lugar da cidade.

Ney Madeira – Só o (Teatro) Municipal tem costureiras e alfaiates contratados, porém eles são funcionários públicos, não viram a noite para entregar o material a tempo. Agora, são fantásticos. Ninguém faz “tutus” para balé melhor do que as costureiras do Municipal.

Marcelo Pies – Nos Estados Unidos até os teatros amadores das universidades têm ateliês de costura. Aqui não existem ateliês nem há renovação do pessoal especializado em costura para teatro. O teatro é artesanal, não é indústria como o cinema, a publicidade ou a televisão.

Ney – Com esta leva de musicais mais grandiosos, talvez comecemos a ter uma produção específica para teatro, com mais profissionais habilitados. Estamos sempre inventando a roda. Em Londres você pode escolher um jacquard e mandar produzir um tecido do século 18. Aqui não existe isso, temos que pintar, bordar, estampar sozinhos.

Como é o processo de criação de um figurino? Em que vocês pensam primeiro, no personagem, na história, no ator, no pedido do diretor?

Ney Madeira – Tem diretores que dizem “Não entendo de figurino, faz aí”. Isso é a pior relação possível. E há os que indicam caminhos. O bom diretor é o que consegue agregar a equipe e criar um conceito para o espetáculo em que todos vão trabalhar. Aquela pessoa que faz reuniões periódicas de criação e concepção, onde você cruza cenografia, figurinos, direção musical. São os melhores resultados. O que deixa a gente solto, sempre pode dizer: “Ih, não era bem isso que eu pensava”. Isso acontece pouco. Em geral, as pessoas adoram tudo. Tem gente que não consegue visualizar, nem ver desenho. Tem que mostrar o caminho. Tem aquele que encomenda. Eu quero isso. Você tenta criar, mas “não era isso o que eu queria”. São poucos. A maioria dá liberdade de criação. Sempre vai bater, porque a gente acompanha ensaio.

Marcelo Pies – O trabalho é de equipe. Se o ator não estiver feliz, não vai dar certo, se a luz não bater bem, vai estourar a cor, o figurino não parecerá bem. Eu nunca tive isso de nenhum diretor me dizer: é assim. Então, vou fazendo e mostrando as idéias. E nosso trabalho não se limita à criação da roupa, a mostrar como conservar os figurinos, mas também o de orientar a postura dos atores com algumas peças, ao uso de sombrinhas, xales, chapéus, perucas. Quem está com um vestido de cauda, por exemplo, precisa aprender a antes de se levantar, chutar a cauda para trás, como se fazia antigamente. Se a atriz não consegue, temos que adaptar o figurino às possibilidades dela.

Ney - É um trabalho que exige psicologia. Há casos específicos em que se o figurino compensa visualmente atores sem atributos físicos para compor determinados personagens.

Marcelo – A gente faz uma transfiguração mesmo e percebe uma nítida diferença nos ensaios quando eles vestem o figurino. Muda até o tom da voz.

A preferência de vocês é por trabalhar com figurinos de época. Por quê?

Ney Madeira – O figurino de época permite maior liberdade de criação, de interpretação. Às vezes, criamos uma estética particular do espetáculo com inspiração em algum lugar, alguma tendência, montando um universo teatral que não precisa, necessariamente, representar fielmente um período.

Marcelo Pies – Teatro é uma caixa preta de representação lúdica. É o sonho que fica possível. O ser fiel não interessa em teatro.

Ney Madeira – Teatro não tem foco, então, o figurino tem que aparecer e simbolizar o tempo todo em cena. Mas tudo depende do contexto, do momento. Quando eu fiz “Dolores”, ouvia a platéia de cabeças brancas comentando que já haviam usado aquele tipo de bolsa, aquele modelo de sapato. O figurino cria uma identificação do ator com o personagem e da platéia com a cena. A paixão das pessoas é que elas projetam o desejo do que surge naquilo exclusivo e especial que foi criado especificamente para um momento.

Quem é referência como figurinista para vocês?

Ney Madeira - A grande precursora é a Kalma Murtinho, uma desbravadora que fez muita coisa, abriu muito esse caminho para a criação no Brasil.

Marcelo Pies - Eu acho incrível o trabalho da Irene Sharaff, que fez o primeiro Sweet Charity do Bob Fosse na Brodway. Hoje ela é figurinista em Hollywood.

Um comentário:

André von Schimonsky disse...

Muito interessante esta entrevista!
Infelizmente esta profissão ainda não é bem reconhecida no Brasil. Mas é muito bom saber que tem gente apresentando ao público profissionais da área.