3.10.06

Continente Multicultural - Literatura


A atualidade de Shakespeare
Por que o gênio inglês continua intrigando, inspirando e gerando bons lucros para quem o vende?
Por Olga de Mello

Em 2002, a escritora britânica, J.K. Rowling, criadora da saga infanto-juvenil Harry Potter, tornou-se a pessoa que recebeu a maior quantidade de dinheiro em direitos autorais no mundo em 2002 – algo em torno de U$ 300 milhões, não apenas por seus livros, mas pelo lançamento do primeiro filme baseado nas aventuras do bruxinho. É de outra inglesa, a falecida Dame Agatha Christie, “mãe” de detetives de raciocínio agudo como Hercule Poirot e Miss Marple, o título de escritor de ficção que mais vendeu no planeta. Suas 78 novelas policiais tiveram 2 bilhões de exemplares publicados em 44 idiomas, o que garante a seus herdeiros quase U$ 4 milhões anuais apenas em royalties. Somas de encher os olhos dos leitores de best sellers, mas que não impressionam os admiradores do autor indiscutivelmente mais celebrado no mundo. Um levantamento da Revista Forbes, em 2004, estimou que herdeiros de William Shakespeare, caso existissem, teriam direito a uma renda anual mínima de U$ 15 milhões em royalties, calculando-se apenas um dólar por exemplar vendido e sem computar a quantidade adquirida por bibliotecas e escolas. Afinal, somente em território americano, naquele ano, haviam sido vendidos 657 mil títulos de Shakespeare. Um sucesso póstumo que dificilmente os crimes “cometidos” por Dame Agatha ou o universo mágico concebido por Rowling merecerão.

Traduzido em 119 línguas, incluindo a linguagem de sinais e em Klingon – o idioma de alienígenas da série de televisão Jornada nas Estrelas -, o inglês William Shakespeare é o dramaturgo com o maior número de peças levadas para o cinema – mais de 350 versões fiéis ou baseadas em suas criações. Segundo o crítico Harold Bloom, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente, superado apenas por Jesus Cristo. Bloom declara abertamente sua admiração pelo poeta que, além de criar palavras novas e expressões na língua inglesa, modificou a estrutura da dramaturgia ocidental e, de acordo com o crítico, inventou o que hoje consideramos a personalidade humana, dando relevância ao monólogo interior dos personagens, às reflexões e às emoções. Mesmo quem não compartilha da mesma devoção que Bloom devota a Shakespeare não pode negar sua popularidade. São incontáveis as montagens amadoras e profissionais de suas peças, em adaptações modernizadas ou tentando manter fidelidade à estrutura elizabetana. Por que um poeta morto há exatos 390 anos, que deixou uma obra de 154 sonetos e 37 peças teatrais completas, continua interessando a leitores de um século que mal têm tempo para assistir a encenações de seus dramas?

“Shakespeare entusiasma porque fala de amor, de ódio, de paixões, de inveja, ciúme, do medo, da morte, do eterno, de tudo, enfim, que compõe o imaginário humano”, acredita Adriana Falcão, que acaba de escrever uma novela recriando a comédia Sonhos de uma noite de Verão, que integra a coleção Devorando Shakespeare, da Editora Objetiva. O primeiro volume, já lançado, é Trabalhos de Amor Perdidos, recontado em prosa pelo cineasta Jorge Furtado, um apaixonado por Shakespeare, que transpôs para a Nova York de hoje as aventuras de quatro homens que, no original, decidem isolar-se do mundo para dedicar-se aos estudos durante três anos, mas têm os planos frustrados ao conhecerem e se apaixonarem por quatro jovens. Adriana levou a ação de Sonhos de uma noite de Verão para o carnaval de Salvador. No terceiro volume da série, que deve ser lançado no segundo semestre deste ano, Luís Fernando Veríssimo situará a trama de Noite de Reis em um salão de cabeleireiro em Paris, usando um papagaio como narrador, revela a gerente editorial da Objetiva, Isa Pessoa, idealizadora da coleção. A única exigência aos escritores foi que trabalhassem em cima de comédias, com algum “desrespeito criativo”, o que seria impossível se as recriações se calcassem em dramas, acha Isa.

“A comédia permite a brincadeira sem ofender os puristas”, diz Isa Pessoa. Apesar da proposta de total liberdade para desrespeitar criativamente a obra do inglês, o convite deixou Adriana Falcão ressabiada. Seu conhecimento de Shakespeare era o de quem já havia assistido a algumas peças, lido alguns poemas, mas tinha a menor pretensão de se apresentar como uma especialista na criação literária do Bardo. Animou-se com a idéia de juntar deuses gregos e orixás do candomblé em dúvida quanto à existência de vida terrena, brincando com elementos como o tempo, a sorte, as coincidências e o destino.

Sonho é uma peça alegre, que fala de amor, traição, ciúme, farsa, fantasia. As trocas de casais enamorados se encaixam perfeitamente nos relacionamentos fugazes estabelecidos no carnaval. Os amores de carnaval, atualmente uma constante entre jovens que ‘ficam’, que namoram apenas durante uma festa, duram pouco e não deixam marcas profundas nos amantes. Parece muito com os feitiços que são lançados sobre os personagens do Sonho de uma Noite de Verão” , diz Adriana.

A simples transposição da peça para os dias atuais era possível, porém Adriana quis criar um novo foco de interesse paralelo aos encontros e desencontros amorosos entre os casais. Assim, os deuses e seres fantásticos decidem misturar-se aos humanos, disfarçando-se com as fantasias que os mortais vestem durante o carnaval. Sem a menor solenidade, os personagens shakespereanos caem na folia e descobrem que os humanos são muito divertidos. “Para encarar o desafio de mexer em Shakespeare eu precisava, pelo menos, caminhar por um terreno seguro. ‘Sonhos’ era a peça que eu mais conhecia dele. Gosto muito do texto, das armadilhas que os personagens criam uns para os outros, da leveza da história, que está inteirinha na adaptação. Quem leu, vai reconhecer a peça na novela. Quem ainda não leu o texto vai conhecer a história a partir de minha adaptação”, afirma Adriana.

Jorge Furtado declarou publicamente sua afinidade com Shakespeare ao usar um de seus sonetos como elemento da trama do filme O Homem que Copiava. O fascínio começou na adolescência, a partir da leitura de uma edição bilíngüe de 24 Sonetos, traduzidos por Ivo Barroso. As peças, a princípio, não o entusiasmaram até deparar-se com a tradução de Millôr Fernandes para Hamlet, que passou a considerar “o melhor livro do mundo”. Com a bardolatria já incorporada, escolheu recontar Trabalhos de Amor Perdido pois esta, ao lado de A Tempestade, sonho de Uma Noite de Verão e As Alegres Comadres de Windsor, é um das quatro peças cuja criação é creditada totalmente a Shakespeare.

“A maioria de seus trabalhos baseou-se em crônicas, lendas, poemas e até em outras peças teatrais. Só o livro Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda, que reúne textos de 1577, serviu de base para treze peças”, conta Furtado, que fez de seu romance um verdadeiro guia para a obra de Shakespeare, incluindo até a relação dos 900 personagens que têm nome nas peças do dramaturgo – grupos anônimos de soldados, elfos, fadas, espectros, nobres, serviçais, demônios, músicos, mascarados e mensageiros, que tomam parte nas encenações são apenas listados, mas não citados individualmente. O didatismo se espalha por todo o livro, que tem um tom de almanaque, o que é proposital, informa Furtado.

“Minha preocupação era em falar para quem nunca havia lido sequer uma peça de Shakespeare. Por isso, resumi os enredos de todas as peças citadas no livro, mesmo as mais conhecidas, como Hamlet. Deu muito trabalho, mas foi também uma desculpa muito boa para eu ler mais Shakespeare ainda, embora alguns especialistas possam vir a discordar de algumas informações que eu forneço”, conta.

As curiosidades a respeito do poeta surgem por todo o texto de Furtado, que transformou o retiro para estudos dos jovens da peça original no encontro de estudantes estrangeiros que ganham bolsas de estudos para desenvolverem projetos sobre Shakespeare. No epílogo, ele discorre sobre a peça, a primeira a ser publicada com o nome de Shakespeare, em 1598, e que talvez tenha o primeiro final aberto no teatro ocidental, quando os casais apaixonados marcam um encontro para dali a um ano, uma inovação para a época, quando o período abordado em uma encenação teatral não deveria ultrapassar uma semana. A sonoridade do título em inglês, Love’s Labour’s Lost, também esconde o duplo sentido de “trabalhos de amor”, que seria um eufemismo para atividade sexual. Ao falar da paixão, a peça defende a tese de que o amor e o romance são mais importantes como experiência de aprendizado do que a ciência e o estudo, “satirizando ainda a linguagem empolada dos autores”,diz Jorge Furtado.

“Shakespeare tinha a capacidade de divertir, compondo comédias com diálogos ferinos que são verdadeiros duelos verbais, enquanto busca a reflexão quanto a sentimentos humanos que nos angustiam. Se alguém quer falar em ambição, lembra-se de MacBeth, se pensar na ausência da figura paterna, recorda-se de Hamlet. Ciúme e inveja estão em Otelo. E nas comédias ele mostrava toda a sua irreverência, criando trocadilhos maliciosos, brincando com amigos e inimigos, citando-os em situações corriqueiras. Hoje, tudo que ele escreveu parece ser encarado – e encenado – como se fosse um texto sagrado, o que tira um pouco da espontaneidade das situações”, acredita Jorge Furtado.

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