9.4.11

Valor Econômico - Livros

Vida social:

A tradição da acolhida, em múltiplos cenários

Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
05/04/2011

“O Livro da Hospitalidade”

Alain Montandon (org.). Senac/SP. 1.437 págs., R$ 330,00

AP

Charles Dickens: cultor da hospitalidade como redentora da miséria social

Sinal de humanidade e civilização, a hospitalidade é uma tradição observada desde o Neolítico, distinguindo o homem dos demais animais. A evolução de sua prática é analisada por 70 especialistas nas quase 1.500 páginas de “O Livro da Hospitalidade – Acolhida do Estrangeiro na História e nas Culturas”.”O dever da hospitalidade, inscrito em todas as culturas, funciona segundo princípios semelhantes em todas elas. O tabu quanto a não atender a um convidado ou não receber um hóspede é tamanho para os chineses que nem se cogita haver uma palavra específica para hospitalidade em mandarim”, explica Luiz Octavio de Lima Camargo, professor do mestrado em hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi, que fez a revisão técnica da edição brasileira.

A falta de nomenclatura dos chineses para a recepção e entretenimento dos convidados é uma das curiosidades sobre costumes mostradas no livro. Além de história, antropologia, filosofia, arquitetura, mitologia, religião e psicanálise, a hospitalidade é apresentada através da literatura, área de formação do organizador do livro, o francês Alain Montandon. Entre as diversas referências literárias, há cuidado em listar até os personagens que impedem a boa convivência com hóspedes, como os fantasmas e vampiros dos romances góticos.

As experiências pessoais de Charles Dickens, que gostava de viver cercado pela família e amigos, levaram-no a entender a hospitalidade como redentora da miséria social descrita em alguns de seus romances e contos, entre eles “Oliver Twist”. Já a observação da burguesia francesa na descrição dos salões de festas por Honoré de Balzac e Marcel Proust se contrapõe à preocupação de Thomas Mann de mostrar a decadência da sociedade da primeira metade do século XX na crítica dos rituais cumpridos pelos aristocratas e burgueses.

“A estrutura da literatura depende basicamente dos encontros sociais ensejados pela hospitalidade, que são elementos de diversas tramas em romances e nos roteiros cinematográficos. É um tema riquíssimo, que não concerne apenas à filosofia ou à economia. E o livro busca ampliar a visão sobre as trocas humanas de maneira ampla e não monetizada”, observa Camargo.

Segundo os antropólogos, a hospitalidade seria o contraponto natural à hostilidade, desencadeando a necessidade da criação de um conjunto de regras que pauta a maioria dos agrupamentos humanos. Entre essas leis estaria a que estabelece o prazo máximo de três dias para a permanência de um hóspede. “A regra dos três dias é comum a muitos povos. Um período maior, só em caso de muita intimidade entre anfitrião e hóspede, ou de parentes próximos. Mesmo assim, há grande possibilidade de atritos, pois o respeito pode se diluir no convívio”, lembra Camargo.

Os pesquisadores demonstram a preocupação de alguns povos em incluir os deveres de hóspedes e anfitriões nos livros que regiam a convivência, como o Kanun, das tribos de montanheses da Albânia, ou a Bíblia judaica. Costumes anteriores ao surgimento do Islã perduram até hoje entre os grupos muçulmanos de nômades que vivem na região do Magreb. O livro fala ainda dos hábitos de acolhida de vietnamitas, russos, japoneses e polinésios, além de enfatizar a hospitalidade como um dever cristão incorporado pelas ordens religiosas, o que viria a evoluir da tradição de hospedar viajantes pelos mosteiros para a montagem de orfanatos e hospitais administrados por sacerdotes de diferentes credos. No entanto, embora contemplem aspectos contemporâneos, enfocando a diplomacia ao abordar o exílio dos refugiados políticos, os textos não se aprofundam na análise do processo de transformação da hospitalidade a partir do século XIX, quando surge o conceito do hotel moderno.

“Até o século XVIII, a norma da aristocracia europeia era passar temporadas nas casas de conhecidos. No século XIX, a hospitalidade comercial conquista prestígio, já que o elegante passou a ser hospedar-se em hotéis. O livro expõe as mudanças no acolhimento em diferentes épocas, um sistema anterior aos códigos de direito e ao capitalismo. Hoje, com os espaços domésticos urbanos mais reduzidos, a hospitalidade passa aos locais de convivência nos edifícios, como salões de festas e espaços gourmand”, observa Camargo, que não isenta os anfitriões de suas funções, mesmo quando contratam profissionais para organizar casamentos ou festas: “Receber em casa ou num salão é o mesmo. O anfitrião tem as mesmas responsabilidades”.

O toque nostálgico do “Livro da Hospitalidade” é reconhecido pelo próprio Montandon, que assina dois dos textos finais, além do prefácio. Ele admite que não foram poucos os aspectos da modernidade a ficar de fora, lembrando a importância de itens que poderiam ser analisados, como a carona e a recepção nas viagens de avião e trem. Um tópico pensado, mas não desenvolvido, foi o da geladeira, o símbolo do acesso à intimidade do lar. Para Montandon, quando os convidados se servem diretamente, pegando garrafas ou alimentos da geladeira, a liberalidade do anfitrião “tem a desvantagem de fazer desaparecer a dimensão pessoal da dádiva”.