26.2.10

Valor Econômico - Comportamento

O Corpo Fala



Sociedade: Brasileiras das classes populares mostram atitude aberta tanto em relação à vida como à estética corporal e não se submetem a padrões rígidos, constata pesquisadora carioca.

Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio.

Cartão de visita, atestado de sucesso, comprovante de trabalho e construção pessoal. As múltiplas definições dos estudiosos para a simbologia em torno do corpo brasileiro refletem a obsessão nacional que, travestida sob uma falsa noção de cuidados com a saúde, se tornou um produto de culto e consumo. Se o fortalecimento financeiro das classes emergentes permitiu sua aproximação de outras camadas da população no uso de produtos e mecanismo de embelezamento, ainda há peculiaridades próprias de cada cultura na exposição desses corpos, principalmente os femininos.

"A mulher pobre tem uma relação mais liberta e mais lúdica, menos persecutória, com o corpo, vestindo roupas que o recobrem, mas não o encobrem, com uma apropriação criativa dentro de outro padrão estético", observa a psicóloga carioca Joana Vilhena de Moraes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nos últimos dois anos, Joana entrevistou mulheres das comunidades de Rio das Pedras, Rocinha e Parque da Cidade para uma pesquisa que complementa seu trabalho anterior, enfocando os cuidados estéticos da população feminina de classes média e alta na zona sul carioca, descrito em "O Insustentável Peso da Feiura" (PUC/Garamond). A nova pesquisa já foi convertida no livro "Com Que Corpo Eu Vou? Sociabilidade e Usos do Corpo em Camadas Populares", a ser lançada no mês que vem.

No levantamento, a psicóloga constatou, além da franca exibição dos corpos, a pouca reserva ou cautela das entrevistadas quanto à privacidade. Elas abriam as casas, recebiam Joana no quarto, trocavam de roupa na frente dela, desfilavam diferentes trajes, cozinhavam, ralhavam com os filhos. "Participar da pesquisa confere visibilidade social para essas mulheres, enquanto as de classe média e alta preferem dar entrevistas por telefone ou em lugares públicos. Essa atitude franca, aberta, também está no prazer ao exibir o corpo, sem submissão a padrões rígidos de magreza, já que a comida tem a ver com opulência e prosperidade", diz Joana.

Apesar de procurar fazer ginástica e se inscrever em hospitais públicos para cirurgias de redução de estômago, essas mulheres não reverenciam os rígidos padrões estéticos nacionais, preferindo a exuberância de Ivete Sangalo ao corpo magro de Gisele Bündchen. A vida saudável proporcionada por uma alimentação adequada e ingestão de produtos de baixas calorias é uma utopia que elas desprezam. "O discurso ideológico que envolve a dieta e o embelezamento perde a força diante do preço dos alimentos e desses produtos. Elas assumem, sem paranoias, o prazer que podem desfrutar de corpos fora de forma. O uso do corpo e da sexualidade são plenos", afirma Joana.

A exposição dos corpos no Brasil, particularmente na zona sul carioca, é um fenômeno único para estrangeiros, como o antropólogo francês Stephane Malysse. Radicado em São Paulo, onde é professor na USP, Malysse percebeu o corpo "mais presente" no Rio do que na França, quando visitou a cidade pela primeira vez em 1996. Dois anos depois, iniciava a pesquisa sobre a corpolatria brasileira diante do olhar de quem vem de outros países. O culto ao corpo modelado pelas academias de ginástica era maior nas classes médias e altas. Já o desnudamento de homens e mulheres fora dos limites praianos era comum entre os que vinham das classes C e D.

"O corpo é um cartão de visita no Brasil e a musculatura, uma extensão sexual do gênero. A roupa amplia o corpo brasileiro, não serve para esconder, camuflar imperfeições. Na França, mulheres jovens a partir dos 20 anos vestem-se como suas mães, porque isso tem a ver com o amadurecimento, chegar a uma outra etapa da vida. Aqui é justamente o contrário", constata Malysse.

Retardar ou retirar marcas do tempo não é vaidade para as brasileiras, mas sinônimos de asseio ou saúde, diz Joana Vilhena de Moraes, lembrando que desde a estabilização da moeda, em 1994, há um aumento anual de 30% nas cirurgias plásticas. Ela destaca ainda que 44% da população feminina brasileira gasta 20% do seu salário em estética.

"Dentro de uma sociedade consumista, artigos de beleza viraram sinônimos de asseio, de saúde. Por isso, cosméticos nem são mais considerados supérfluos. Cuidar de si passou a ser uma obrigação e uma nova jornada de trabalho para a mulher. A beleza é vista como um dever e uma obrigação e não um direito", afirma Joana.

Fora do Brasil, o panorama é outro, garante a antropóloga Mirian Goldenberg, que tem acompanhado grupos de brasileiras e alemãs de classes média e alta, todas acima de 40 anos. "Aqui, o corpo é um verdadeiro capital, como já dizia Pierre Bourdieu. As mulheres não têm outro tipo de valorização e o corpo se transformou em mecanismo de ascensão social. Na Alemanha, a diferença começa por não haver tantas mulheres de cabelos tingidos. O amadurecimento não é visto como um estigma, mas como a época em que estão no auge da realização profissional", diz a antropóloga, que relata em seu livro "Coroas" (Record) a dificuldade em formar um grupo de discussão sobre envelhecimento com mulheres acima de 50 anos. O problema não era integrar o grupo, mas chamá-lo de coroas, como queria Mirian.

"Permaneço a única participante do grupo. Todas as indicações para rebatizá-lo ridicularizavam a velhice, reafirmando a juventude e a sexualidade em corpos maduros. Algumas sugeriam que se chamasse 'jovens coroas' ou 'coroas gostosas'", conta.

Segundo a antropóloga, as alemãs maduras consideram falta de dignidade os desvarios cometidos em nome da aparência mais jovem. "A mulher acima dos 40 anos tem um discurso de libertação, sente-se capaz de usufruir o momento em que seu corpo não é objeto de tanto desejo. No Brasil, o que escuto é o desespero das mulheres que se sentem invisíveis por não ser mais olhadas como ser sexual. Na Alemanha, nesse momento elas comemoram a liberdade. A aparência está dissociada da sexualidade, tanto que é comum pessoas mais velhas namorarem. E lá eles têm Ângela Merkel, que não precisou da beleza para chegar ao poder", comenta Mirian.

12.2.10

Valor Econômico - Música


Martinho da Vila faz samba requintado para a Unidos
Olga de Mello, para o Valor, do Rio
12/02/2010

Se a Vila Isabel de Noel Rosa não pretendia "abafar ninguém", apenas mostrar que fazia samba também, a Unidos de Vila Isabel deixa de lado a falsa modéstia do autor de "Palpite Infeliz" para festejar o centenário de nascimento do seu compositor mais celebrado na segunda-feira de Carnaval, embalada pela requintada melodia composta por Martinho da Vila. O desfile com o enredo "Noel: a Presença do Poeta da Vila" provavelmente será a mais exuberante das homenagens ao compositor, que, até dezembro, terá sua vida e obra revistas em livros, discos, filmes, shows e debates por todo o país.

Chega agora às livrarias "O Morro e o Asfalto no Rio de Janeiro de Noel Rosa" (Editora Aprazível), do jornalista João Máximo. Classificado pelo autor como "um guia para a visita ao Rio por meio das letras de Noel", o livro enfoca as transformações da cidade entre 1910 e 1937, abordando com fotografias da época os aspectos culturais e políticos. "Quis mostrar festas, o botequim, a boemia e, sobretudo, a influência dos compositores do morro sobre Noel", explica o jornalista, autor, com o músico Carlos Didier, de uma renomada biografia de Noel Rosa que a Universidade de Brasília lançou na década de 90.
As mudanças físicas e culturais da cidade também estarão em "O Rio de Noel", de André Diniz, que a Casa da Palavra lançará no segundo semestre. "Noel era como um Baudelaire, um 'flâneur', um grande observador da cidade, que escrevia sobre as diferentes vozes que ouvia. Ele andava por todo o canto, saía da Vila [Isabel] e ia dormir no Morro do Andaraí", conta Diniz. "Esse comportamento é impensável para um jovem da atualidade. Um garoto do Salgueiro não pode circular pelo samba na Mangueira. O samba não tem mais esse poder universalista nem é o porta-voz da cidade, que no tempo de Noel se associa à música."
Renovar a integração de asfalto e morro, que teve em Noel Rosa um de seus principais elos, foi a intenção da diretoria da Unidos de Vila Isabel, que convidou o economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Lessa a montar mesa-redonda sobre samba, Noel Rosa e futebol antes de um de seus ensaios, para os componentes da escola, na semana passada. Segundo o presidente da Vila, Wilson Vieira Alves, parte dos integrantes da agremiação, principalmente os mais jovens, pouco conhece Noel Rosa. "Já passamos o filme 'Noel, o Poeta da Vila' [de Ricardo van Steen] para que todos entendessem o que a escola vai apresentar no desfile."
Para Lessa, o debate era mais interessante para os expositores - o músico Rodrigo Lessa, o historiador Raul Milliet, o jornalista Nelson Moreira e o pesquisador Carlos Didier - do que para quem assistisse a ele. "A universidade sempre estuda o Carnaval, mas com muita distância, sem integrar-se a ele." O intercâmbio entre o mundo de Noel e a academia sai em publicação ainda neste semestre da editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), em parceria com a gravadora Biscoito Fino. Coordenado por Júlio Diniz, do departamento de letras da universidade, o livro terá artigos de professores da instituição sobre Noel na cultura urbana, acompanhado por um CD com canções pouco conhecidas do compositor, interpretadas por Martinho da Vila e músicos que se apresentam na Lapa. "O disco vai juntar o sambista veterano com esses jovens que cultuam Noel, o primeiro grande poeta da música brasileira, com letras sofisticadas para melodias riquíssimas", diz Diniz.
Ao lado de lembranças destinadas ao público infantil, como a publicação de "O Menino Noel", peça de Karen Aciolly que a Rocco lança no segundo semestre, há homenagens ao compositor que dificilmente ocorreriam em sua época. Em dezembro, ao vencer a disputa pela presidência da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vilaça anunciara que 2010 seria o Ano de Noel Rosa, a exemplo de comemorações promovidas pela entidade em torno de centenários de nascimento ou morte de outros músicos - tanto eruditos, como Heitor Villa-Lobos, quanto sambistas, como Ataulfo Alves. Afirmando que Noel era "o acadêmico do samba, o emblema da poesia cantada", em janeiro, Vilaça entregou a medalha da ABL a Wilson Vieira Alves, prometendo festa nos salões da Casa de Machado de Assis, em 11 dezembro, dia do nascimento do compositor.
Citado por outras escolas de samba e pela Vila Isabel em diversos sambas-enredo, esta é a primeira vez em que Noel Rosa é o tema de um desfile no Grupo Especial, observa o pesquisador Alberto Mussa, autor, em parceria com Luiz Antônio Simas, de "Samba de Enredo, História e Arte" (Civilização Brasileira, 240 págs., R$ 34,90). Em destaque, para Mussa, está a complexidade do samba composto por Martinho da Vila.
"Esse é um samba de melodia única que não segue a fórmula atual, de empolgar a multidão de espectadores. Os sambas de enredo atuais sempre buscam levar o sambódromo ao delírio, a explodir em animação", explica Musa. Para ele, a música de Martinho da Vila tem uma cadência própria, mais afinada com as disputas das escolas de samba tradicionais, que procuravam riqueza melódica em belas melodias, "sem se importar com o arrebatamento de quem assistia ao desfile".
Com 3,5 mil componentes, 31 alas, oito carros, um tripé e oito setores, a Unidos de Vila Isabel conta a vida de Noel Rosa, sua trajetória artística e os acontecimentos políticos de sua época, mostrando a Revolta da Chibata e a Revolução de 1930. "Tenho certeza de que o espírito de Noel vai baixar na avenida, pois ele não vai querer perder a própria festa. A nossa homenagem ao Noel não acaba depois do Carnaval. O ano inteiro queremos promover fóruns que mostrem sua importância para a valorização do samba e das comunidades que o produziam", informa Wilson Aires Alves.
Bem de acordo com a informalidade cultuada por Noel, ainda são poucas as outras comemorações de seu centenário que têm data e local definidos. A programação está aberta em boa parte dos espaços culturais cariocas, que já têm propostas de projetos celebrando Noel. A Prefeitura do Rio, por meio da Secretaria de Cultura, garante os festejos, sem precisar, no entanto, quando ou o que fará. O violonista Luís Felipe de Lima já acertou para o fim do ano um ciclo Noel Rosa no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. A data, no entanto, continua em aberto.
"O aniversário de Noel é em dezembro, o que permite inclusão nas agendas ao longo do ano", afirma o cavaquista Henrique Cazes, que negocia em um desses locais a montagem das três óperas radiofônicas de Noel, projeto que assina com o pianista Tim Rescala. Em janeiro, Cazes e a cantora Cristina Buarque apresentaram na Sala Baden Powell o show "Sem Tostão", com músicas de Noel, já em referência ao centenário. Com dez álbuns e cinco livros dedicados a Noel, Cazes deve ainda relançar um disco de canções inéditas do compositor, distribuído em 1983 como brinde natalino de uma empresa.
Passadas as comemorações do Ano de Noel, sua presença permanecerá além das rodas musicais. Em 2011, o jornalista Sérgio Cabral lança, pela Companhia Editora Nacional, a biografia da cantora Aracy de Almeida, uma de suas principais intérpretes. "Noel criou o novo mundo da música brasileira. Existe uma música antes dele e outra que vem depois. Ele é fundamental na história de Aracy, sua principal intérprete porque imprimia ao samba a sofisticação e o encanto que Noel pedia."