6.10.06

Valor Econômico - Literatura

Cerimônias do adeus

Por Olga de Mello, para o Valor
06/10/2006

A chamada "hospitalização da morte", de que fala o escritor Philippe Áries, sepultou uma tradição da civilização ocidental: a reunião de parentes e amigos em torno do leito do doente em seus últimos momentos. Atualmente, raros são os que morrem em sua própria cama, cercados por pessoas amigas, mas as despedidas e os conselhos dos que estão prestes a morrer multiplicam-se nas prateleiras de livrarias, com boa receptividade do público. Os livros de "inspiração" abrigam desde os relatos das perdas pessoais de escritores como o inglês C.S. Lewis, a chilena Isabel Allende e a americana Joan Didion às conversas de Mitch Albom com um professor de psicologia que sofre de uma doença degenerativa. A eles recentemente juntou-se uma reflexão sobre viver e morrer com um ponto de vista inédito - o de quem sabe que está com os dias contados. Eugene O'Kelly, ex-presidente mundial da KPMG, decidiu deixar em livro suas observações sobre a vida quando soube, em maio de 2005, que teria cerca de três meses de vida.

Divulgação Joan Didion: sucesso de público com livro em que analisa o desamparo e a solidão que conheceu a partir da morte do marido, o escritor John Gregory Dunne

Passado o choque do diagnóstico sobre o câncer cerebral progressivo, O´Kelly traçou planos para, depois de afastar-se da presidência da empresa, aproveitar o tempo que lhe restava criando "dias perfeitos", nos quais estaria ao lado da mulher, das duas filhas, dos irmãos, da mãe e de amigos. Além de despedir-se de todos, planejou seu próprio funeral e começou a escrever "Claro como o Dia - Como a Certeza da Morte Mudou Minha Vida" (Nova Fronteira), no qual afirma que o excesso de dedicação ao trabalho embota a criatividade, que poderia ter aprimorado se tivesse passado mais tempo com a família. Sua viúva, Corinne, encarregou-se de concluir o manuscrito seis semanas após a morte do marido. "Eugene havia tratado diretamente com a editora a publicação do livro e nós trabalhamos juntos enquanto ele pôde escrever. Sua intenção era dizer ao mundo que não é importante quanto se vive, mas sim o que cada um faz com sua vida, e que ninguém precisa temer a morte", contou Corinne ao Valor.

Traduzido em dez países, "Claro como o Dia" já vendeu 80 mil exemplares no exterior, desde seu lançamento, em janeiro. No Brasil, 2% da receita obtida serão destinados ao Instituto Nacional do Câncer. Segundo Corinne, seu marido esperava que o livro incentivasse a dotação de mais recursos para pesquisas sobre a doença: "Qualquer parcela das vendas que venha a ser utilizada para pesquisas que procurem novos tratamentos para a doença vai exatamente ao encontro do que Eugene pretendia quando escreveu 'Claro como o Dia'".

Enquanto O´Kelly determinou em detalhes como seria seu funeral, o professor universitário americano Morrie Schwartz teve a idéia de reunir parentes e amigos para que lhe mostrassem os discursos que poderiam vir a fazer depois que morresse. Bem-humorado, Schwartz lamentou que um amigo, que sofrera um infarto fulminante, não tivesse podido receber todas as homenagens que lhe foram dirigidas em seu enterro. Schwartz promoveu, então, o que chamou de "funeral ao vivo". O otimismo do professor e suas observações sobre amor, trabalho, família, compaixão e amizade foram registradas por seu ex-aluno, o jornalista Mitch Albom, em "A Última Grande Lição - O Sentido da Vida". Lançado pela Sextante em 1998, o livro acaba de ganhar uma nova edição, depois de vender 200 mil exemplares no Brasil.

"Exitus Letalis" (Geração Editorial), escrito pelo médico boliviano Reginaldo Ustariz Arze, traz um contundente relato sobre o desenvolvimento do melanoma que matou sua mulher, Ruth, em 1994. Na forma de diário, o livro mostra todas as etapas do tratamento a que Ruth, também médica, foi submetida, e discute se há um nível superior de conhecimento tecnológico necessário no cuidado com pacientes terminais. Ustariz Arze, que vive em São Paulo, levou a mulher para passar os últimos dias de vida na Bolívia. Ruth, como Morrie Schwartz e Eugene O´Kelly, morreu em casa, acompanhada pela família.

A intensidade dramática de mensagens deixadas por quem já morreu foi aproveitada no telefilme "Sunshine - Um Dia de Sol", que no Brasil também foi exibido em cinemas e levou legiões de adolescentes às lágrimas com o drama de uma jovem mãe que grava conselhos para a filha pequena, ao saber que tem câncer. Os diários e gravações que inspiraram Norma Klein - uma autora de livros para adolescentes - a escrever a história eram de Jacqueline Heyston, que morreu de câncer ósseo aos 20 anos, em 1971. As gravações de Jacqueline também deram base para baladas de John Denver, que compôs uma bem-sucedida trilha sonora para o filme. Tema semelhante foi explorado pela irlandesa Cecília Ahern. Em "P.S. Eu te amo" (Relume Dumará), Cecilia conta a história de uma jovem viúva que abre cartas do marido morto com recomendações para que ela toque sua vida adiante.

Se a morte sempre foi um tema que levou à criação de belas peças literárias, como o soneto que Machado de Assis dedicou à mulher ("A Carolina") ou o poema "Funeral Blues", de W. H. Auden, nem todo escritor quis expor publicamente sua própria dor. O autor inglês C. S. Lewis, celebrizado pela saga "As Crônicas de Nárnia", lançou sob o pseudônimo de N.C. Clerk, em 1961, o diário que escrevera sobre o desespero e a revolta que sentiu com a morte da mulher, Joy. Embora afirmasse que não queria associar sua experiência particular à obra como escritor, Lewis acabou cedendo à insistência de amigos e reconheceu a autoria do livro.

Em 1995, a romancista Isabel Allende escreveu "Paula", uma longa carta em que mistura suas próprias lembranças à biografia da filha de 29 anos, que estava em coma. Mesmo sabendo que Paula jamais se recuperaria - ela ficou um ano inconsciente até falecer - Isabel continuou coletando histórias da família como se ainda pudessem serdirigidas à filha. O sucesso do livro gerou um outro, "Cartas a Paula", em que a escritora reuniu mensagens de leitores que lhe expressavam solidariedade. Por causa de Paula, que se dedicava a trabalhos sociais, Isabel criou uma fundação que dá apoio a organizações de ajuda a mulheres e crianças carentes.

A ensaísta e romancista Joan Didion entrou pela primeira vez nas listas de livros mais vendidos nos EUA quando lançou, em outubro de 2005, "O Ano do Pensamento Mágico" (Nova Fronteira), livro em analisa o desamparo e a solidão que conheceu a partir da morte súbita do marido, o escritor John Gregory Dunne. A escritora mostra suas próprias reações enquanto comenta desde manuais de etiqueta do início do século XX a textos do antropólogo inglês Geoffrey Gorer, que credita à "profissionalização da morte", reservada aos ambientes hospitalares, um novo comportamento social, que estimula os enlutados a esconder suas manifestações de sofrimento, sem que incomodem "a alegria dos outros". A extensa pesquisa da escritora é entremeada por recordações dos quase 40 anos de convivência com John e a filha Quintanna, que morreu enquanto a mãe escrevia o livro.

Para o psicanalista Luiz Alberto Py, livros que falam sobre a proximidade da morte têm muita procura porque apresentam maneiras diferentes de vivenciar o que a sociedade ocidental encara como uma perda material. "A morte anunciada nos permite fechar as contas com a vida. Já acompanhei pacientes terminais. Quem sabe que vai morrer procura dar o que tem de melhor aos outros, como se fosse abrir seu próprio testamento em vida, e encara a morte não como um mal, mas como um momento da existência."

3.10.06

Continente Multicultural - Entrevista

CONVERSA
PAULO LINS: “Há muita lenda em torno da vida de bandido”
Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, fala do Estácio – tema de seu novo livro –, das lendas em torno da vida de bandido e de sua experiência como roteirista de cinema

Por Olga de Mello

Passar em frente a um dos muitos botequins no bairro carioca do Estácio era uma aventura apavorante para o menino Paulo Lins na década de 50. Quando saía sem a companhia – e a proteção – de um adulto, atravessava correndo para a outra calçada, a fim de evitar os bares, onde, segundo sua mãe, “só tinha bandido e vagabundo”. Levou tempo até descobrir que os malandros que a mãe apontava eram Nélson Cavaquinho, Cartola e outros bambas, que ficavam nos bares conversando, bebendo e criando obras-primas da MPB. Foi no Estácio que Paulo Lins nasceu, há 48 anos. E é o Estácio, em épocas diversas, o cenário e o eixo de seu novo romance, que será lançado em 2007.


Há quem diga que o segundo romance é o mais difícil para o escritor do que toda a sua obra. Como o senhor está enfrentando esta pressão?

Na verdade, este é o meu primeiro romance, ou melhor, a primeira proposta de romance que eu fiz, muitos anos atrás. Cheguei a botar alguma coisa no papel muito antes de Cidade de Deus. Queria juntar o samba, a umbanda e a história do negro no Brasil. Então, a idéia é antiga. Mas, aí, comecei a trabalhar na pesquisa da (socióloga) Alba Zaluar na Cidade de Deus. Fui chamado porque eu conhecia os moradores, tinha crescido ali. Ouvia histórias, recordava outras. Então, acabei sendo convencido a escrever sobre o crescimento da violência e a formação daquela comunidade. Agora, retomei minha primeira história. Por isso nem dá para sentir medo da segunda obra. Para ser mais preciso, este será meu terceiro livro, pois o primeiro foi Sob o Sol, de poesias.

Como em Cidade de Deus, o novo romance terá uma linguagem reproduzindo a forma de falar de cada época em que a história se passa?

Pensei que uma linguagem mais acessível, bem fiel à maneira como o povo falava, atrairia aquela população que eu mostrava ali, atingiria mais aquele público que estava sendo ali retratado. Não foi isso que aconteceu. O livro foi lido pelos consumidores habituais de livro, a classe média e a elite. Os pobres só se viram depois, com o filme. Nesta história de agora eu teria muita dificuldade em recriar a linguagem dos anos 30, precisaria inventar uma linguagem oral, inventar um idioma próprio. Ia ficar muito Guimarães Rosa, então, optei pelo uso do coloquial, com algumas gírias.


A história vem de suas experiências como morador do Estácio?

Na verdade, ele vem do medo que eu sentia dos sambistas. O Estácio era o centro nervoso do samba. Eu queria contar um pouco daquele Estácio, queria falar sobre o bairro, a música e os negros no Brasil. Mostrar um Brasil ainda mais difícil para o negro do que o país que conhecemos agora. O samba começou a se popularizar na década de 20, mas sambista não tinha o mesmo status que hoje em dia, não. A valorização começou bem mais tarde, em meados da década de 60. O preconceito contra o negro e suas manifestações era aberto. Ninguém respeitava umbanda. Havia perseguição da polícia que, não raro, enquadrava todos por vadiagem. Se até hoje o negro é perseguido, imagina há 40 anos.

Por que sua família saiu do Estácio, bairro central do Rio, para a Cidade de Deus, na época classificada como zona rural?

Foi o sonho da casa própria. Meu pai queria sair do aluguel, por isso nos mudamos, numa trajetória diferente dos outros moradores da Cidade de Deus, que haviam sido removidos de favelas no Centro. Para mim foi uma festa. A Cidade de Deus parecia mais uma estrada empoeirada, mas tinha mato, rio. Fui morar na roça, subir em árvore, brincar o dia inteiro com a molecada, a melhor das infâncias.

Sua formação foi diferente dos outros meninos da Cidade de Deus?

Muito, pois não precisei ajudar a sustentar a família. Minhas irmãs mais velhas completaram o secundário e foram trabalhar. Eu pude fazer Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E a vida é muito diferente para quem pode estudar, o ensino sempre traz algo de bom. Até uns anos atrás, eu sempre me encontrava com ex-colegas de colégio da Cidade de Deus. Quase todos tiveram que trabalhar muito cedo. Hoje, há campanhas para manter as crianças na escola, mas é raro encontrar projetos sociais que não privilegiem o aprendizado profissionalizante. O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré é um dos poucos a dedicar-se essencialmente a estimular os meninos pobres a fazer faculdade. Quem vai para a universidade sempre melhora de vida.

Como a sua vida mudou depois do lançamento de Cidade de Deus?

O livro foi bem recebido, mas nem chegou perto do sucesso do filme, que teve mais do que a boa direção do Fernando Meirelles – um elenco extremamente talentoso. Foi o filme que botou a Cidade de Deus no mapa do planeta. Até hoje eu estranho, porque o livro acabou sendo lançado em 30 países, teve mais de 25 traduções. Aí, estou na Finlândia participando desses lançamentos e vem uma pessoa falar que leu a minha história. Tudo isso me levou a deixar o Magistério, os convites foram surgindo, outros tipos de trabalho também. Gosto de criança, sinto saudades do Magistério, porque sala de aula rejuvenesce.

O reconhecimento da chamada cultura da periferia veio a partir de Cidade de Deus?

Naquele momento estavam surgindo o Afroreggae, o Rappa, Seu Jorge. Não havia música vinda das comunidades. Hoje, o pessoal está se expressando e entrando no mercado, que antes existia muito distante da manifestação da periferia. Certamente houve uma inclusão cultural da periferia depois de Cidade de Deus. No entanto, a inclusão social e econômica não acompanharam essa inclusão cultural. Continuamos um país sem profissionais liberais negros, o que só vai se modificar com um investimento político maciço em educação.


Como é viver da escrita?

Em 2004, fiz o roteiro de Quase Dois Irmãos, com Lúcia Murat. Atualmente, tem o romance, mas além dele estou trabalhando no roteiro de Beirando a Maré, que Lúcia Murat deve começar a rodar este ano, e A História de Dé, de Breno Silveira, cujas filmagens serão em 2007. A literatura é um ofício muito solitário. Roteiro é divertido, muda o tempo todo, tem muita gente para mexer. Ou é a locação que fica muito cara ou é o ator que não acha sua fala verossímil. É bom porque se trabalha em equipe, embora seja arte de segunda. Roteiro é treino, filme é que é jogo.

(Leia a entrevista na íntegra, na edição nº 70 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)



Olga de Mello é jornalista.


Valor Econômico - Empreendedores Culturais

Sobrevivente de uma idéia ousada


22/09/2006

Quando o carioca Charles Cosac desembarcou em São Paulo, em 1996, após uma temporada de 15 anos na Europa, estava determinado a abrir uma editora de livros de arte. "Não procurava uma brecha de mercado, não pensava em ganhar dinheiro. Eu queria construir algo para mim e para o Brasil." Associou-se ao cunhado, o americano Michael Naify, e seis meses depois publicavam o primeiro livro, "Barrocos de Lírios", um cuidadoso volume sobre a obra do artista plástico Tunga.

Carol Carquejeiro/Cia. de Foto/Valor Cosac: "A empresa cresceu sem planejamento algum. Ninguém nos dava mais do que um ano de sobrevivência"

Hoje, o catálogo da CosacNaify apresenta 500 títulos de história e teoria da arte, cinema, teatro, design, arquitetura, fotografia, dança, moda, literatura, filosofia, antropologia e crítica literária, todos seguindo um padrão requintado, de altíssima qualidade. "O que nos faltava em experiência administrativa, compensamos com ousadia e dedicação. A empresa cresceu sem planejamento algum. Ninguém nos dava mais do que um ano de sobrevivência."

Rapidamente, Charles Cosac descobriu que, apesar da carência de livros de artes visuais, firmar-se no mercado editorial brasileiro não seria fácil. "Na Europa, um livro de arte pode ter uma tiragem de até 50 mil exemplares. Aqui, é de apenas 3 mil volumes. O ciclo de um livro comum é de um ano e meio, desde a preparação ao tempo que permanece nas prateleiras. O livro de arte tem um ciclo muito maior, de cinco a seis anos. Eu imaginava que não encontraria concorrência, que era um ato filisteu brigar por um título no Brasil. Havia uma certa irreverência em lançarmos uma editora voltada para esse nicho dentro de um país onde nem os letrados têm o hábito de ler", lembra Cosac.

Reconhecendo que lhe faltava "uma visão panorâmica" da editora, há cinco anos se afastou da administração para se dedicar exclusivamente ao preparo das edições de livros de arte. "Acompanho tudo o que acontece na empresa, mas aprendi a descentralizar e garantir que a editora tenha vida própria, sem estar ligada a mim necessariamente."

A ênfase ainda é em arte, que responde por 35% do catálogo. Há espaço também para apostar em inovações, como a caprichada recente edição do clássico "Bartleby, o Escriturário", de Herman Melville. A capa é lacrada e as páginas, coladas, precisam ser abertas por uma espátula plástica, que acompanha o volume. Semelhante às edições da época de seu lançamento, em 1853.

Radicar-se em São Paulo foi uma decisão tomada a partir da criação da editora. "São Paulo é uma cidade dinâmica e referência para a arte no Brasil. Aqui havia mais chances de sucesso para uma editora de livros de arte", afirma Cosac. Ao chegar, não desanimou com a complexidade do processo para abrir um negócio no Brasil: "Levei um susto com o número de documentos exigidos para se alugar um imóvel. Na Europa seria bem mais simples. Mas eu não ia desistir. Queria fazer algo que não fosse efêmero, que sobrevivesse a mim, que ficasse para o meu país".

Dez anos depois, ele percorre a pé os dois quarteirões entre sua casa e a editora, em Higienópolis. Para garantir a paz de espírito, não quer enfrentar trânsito e evita ler os noticiários. "Prefiro a distância do que me angustia. Sou o homem mais rico de São Paulo, pois não preciso dirigir até meu escritório. Faço o meu próprio tempo, tive o privilégio de criar uma vida feliz para mim." (Olga de Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Empreendedores Culturais

O coreógrafo dá espetáculo na periferia


22/09/2006

Na década de 60, o paulistano Ivaldo Bertazzo assistiu ao espetáculo de "um louco" chamado Maurice Béjart e decidiu fazer da dança seu ofício. Quarenta anos mais tarde, ele se dedica a mostrar que a dança pode ser não apenas uma expressão artística, mas uma maneira de reeducar atitudes perante a vida, tanto para profissionais engravatados, que procuram sua escola a fim de relaxar das tensões do dia-a-dia, quanto para jovens da periferia de São Paulo, que participam do projeto Dança Comunidade. Mais do que levar seus alunos ao palco, em espetáculos que juntam canções da Índia e da África do Sul aos batuques brasileiros, Ivaldo quer, por meio da arte da dança, promover a mudança de valores desses jovens, preparando-os para disputar o mercado de trabalho.

Marisa Cauduro/Valor Ivaldo Bertazzo: "Tão importante quanto se apresentarem em palco é que se profissionalizem, saiam do assistencialismo e se valorizem por meio da carteira assinada"

Trazer um rapaz da periferia para um ensaio em sala de dança não é tarefa fácil; por isso o recrutamento fica a cargo de ONGs. "Depois vem a fase de convencer as famílias e os professores. Chamamos todos aqui, fazemos palestras, demonstrações. Se não houver integração, não sai nada", diz Bertazzo.

A primeira experiência foi no Rio de Janeiro, quando montou um projeto de experimentação de coordenação motora com 70 adolescentes de 12 a 20 anos, todos moradores do Complexo da Maré. O trabalho acabou evoluindo para três espetáculos: "Mãe Gentil" (2000), "Folias Guanabaras" (2001) e "Dança das Marés" (2002). Em São Paulo, começou o Dança Comunidade no Sesc, em 2003. A proposta era ensinar dança e formar professores entre pessoas sem qualquer conhecimento formal de técnicas de balé. Atualmente, com apoio da prefeitura de São Paulo, os 100 jovens que participam do Dança Comunidade recebem bolsas-salário e têm cinco horas de aulas diárias de música, percussão, reeducação do movimento, dança, origami, fisioterapia e práticas circenses. No Sesc, o grupo já montou concorridas temporadas com os espetáculos "Samwaad - Rua do Encontro" e "Milágrimas".

"Tão importante quanto se apresentarem em palco é que se profissionalizem, que saiam do assistencialismo e se valorizem por meio da carteira assinada, do emprego", acredita Bertazzo, que trabalha com amadores desde 1975, quando criou a Escola de Reeducação do Movimento e passou a montar espetáculos com os chamados "cidadãos dançantes". Nunca deu atenção às críticas, que sempre surgem, lembrando que o Brasil tem a tradição de aceitar amadores em teatro, fotografia e música, mas reserva a dança para os profissionais.

"Eu queria quebrar esse padrão, levar para o palco corpos heterogêneos, sem a uniformidade dos bailarinos. A Broadway, em Nova York, está repleta de talentos porque diversas gerações de artistas aprenderam a dançar nas coxias. Esses meninos vêm aprender uma linguagem gestual muito diferente da que usam no axé ou no funk, e também abrem os ouvidos e as mentes para outros sons. Além disso, o fato de se deslocarem para o centro de São Paulo os levará a tomar posse da cidade, a descobrir o circuito cultural, a ter um novo desejo de consumo", acredita Bertazzo, que continua à frente de algumas turmas na escola, entre elas a dos jovens do Dança Comunidade." (Olga de Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Empreendedores Culturais

Um cinemaníaco de alma nômade


22/09/2006

O primeiro filme a que Adhemar Oliveira assistiu era de Charles Chaplin, projetado sobre um lençol estendido na lateral de uma caminhão, em alguma cidade do interior de São Paulo. Não consegue se lembrar do lugar precisamente, nem da época. O pai tinha um parque de diversões itinerante e as viagens da família eram freqüentes: "Fui alfabetizado com sete cartilhas diferentes, uma de cada escola em que me matricularam", conta. Por conta das freqüentes mudanças, desenvolveu o espírito nômade na infância, quando também tomou gosto por cinema, o melhor programa para ele e os sete irmãos, nas matinês de domingo. Um gosto que o faz permanecer como diretor de programação dos filmes das 60 salas dos grupos Arteplex, Circuito Cinearte e Espaço Unibanco de São Paulo, distribuídas por sete cidades do País.

Emiliano Capozoli/Valor Adhemar Oliveira: "Ainda estamos longe dos 3.500 cinemas que o Brasil tinha na década de 70. Mas já foi bem pior"

"Eu quero cuidar do que é bom, não me preocupar com ar-condicionado", brinca, embora quase não tenha tempo para assistir filmes no escurinho do cinema, exceto quando está fora do Brasil. "Em Cannes, eu me acabo. Vejo oito filmes por dia. Aqui, fico no DVD mesmo", diz.

Fundar uma rede de cinemas não passava pela cabeça do estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo, funcionário concursado do Banco Central. Depois de formado, queria continuar os estudos na Universidade Autônoma do México, onde pretendia ser aluno de Octavio Paz. Adiou o sonho ao se formar e pedir demissão do Banco Central para fazer a programação do Cineclube Bexiga, um dos raros cineclubes brasileiros que não estavam ligados a entidades.

A alma de cigano desse paulista de Jaboticabal voltou a se manifestar em 1982, quando rumou para o Rio de Janeiro, decidido a seguir de navio até o México. Acabou fazendo a programação do Cineclube Macunaíma, da Associação Brasileira de Imprensa. Três anos depois, integrou o grupo de oito pessoas que abria o Coper Botafogo, sala de um velho cinema no fundo de uma galeria ao lado da estação do Metrô de Botafogo. Nascia o empresário. O sucesso do Coper, pioneiro em tirar o chamado cinema de arte do circuito dos cineclubes, levou à criação do Grupo Estação - do qual Adhemar e as sócias Patrícia Durães, Eliane Monteiro e Lúcia Houaiss se desligaram em 1996 -, do Espaço Unibanco de Cinema, do Circuito Cinearte e, finalmente, do Arteplex, que colocou lado a lado os chamados filmes de arte e os comerciais.

"Havia o temor de que a platéia envelhecesse junto com a gente", explica. "Foi uma estratégia para ampliar o público, tão importante quanto as ações culturais que desenvolvemos." Entre essas ações culturais estão sessões abertas para alunos de escolas públicas em várias cidades e para os 10 mil sócios que integram o Clube do Professor.

Atualmente, o Arteplex é a empresa brasileira que mais abre cinemas no país. Até o fim do ano serão inauguradas três salas em Santos (São Paulo) e quatro em Tubarão (Santa Catarina). Em 2007, o Arteplex terá cinemas em Recife (oito salas) e Salvador (cinco salas). "Ainda estamos longe dos 3.500 cinemas que o Brasil tinha na década de 70 do século passado. Mas já foi bem pior. Hoje existem cerca de 2 mil salas", comenta Adhemar, que gostaria de ver uma rede de microcines por todo o país, como acontece na Espanha, onde 90% das cidades têm cinemas. " (Olga de Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Empreendedores Culturais

O homem dos shows espetaculares

Por Olga de Mello, para o Valor
22/09/2006


Seis meses depois de fazer as duas maiores bandas de rock da atualidade - os ingleses Rolling Stones e os irlandeses do U2 - tocarem no Brasil com intervalo de apenas um dia entre as apresentações, Luís Oscar Niemeyer diz que ainda tem a sensação de que os espetáculos, realizados em fevereiro, aconteceram "muito recentemente". Tanto que seu próximo projeto é bem menos ambicioso, embora de grande relevância do ponto de vista educacional - gravar em DVD um concerto pop sinfônico sobre lendas brasileiras, com canções inéditas de 14 artistas, entre eles Milton Nascimento, Toquinho e Roberto Frejat.

Ag. O Globo Luís Oscar Niemeyer: "A apresentação ao vivo não acaba porque desperta sensações únicas nos artistas e no público"

"Há muito tempo queria fazer algo sobre a cultura brasileira. Cada um está compondo músicas sobre boitatá, curupira, saci, as figuras lendárias do país." No projeto estão também Lenine, Zé Ramalho, Ana Carolina, Fernanda Abreu, Toni Garrido e Jorge Vercillo, conta Niemeyer, que não revela se já está em negociações para trazer outro superstar internacional ao Brasil.

Há cerca de dois meses, ele jogou uma pá de cal nos sonhos dos fãs de Madonna, ao anunciar que a cantora desistira de incluir o Brasil em sua turnê mundial. Seria a terceira façanha deste ano do veterano empresário, um dos responsáveis por colocar o Brasil no circuito da música internacional em 1985, quando foi o coordenador geral do primeiro Rock'n'Rio, promovido pelo publicitário Roberto Medina.

"Difícil era montar festival naquela época. Atualmente é bem mais fácil. O Rock'n'Rio teve um papel importante, deu credibilidade ao empresariado brasileiro. O setor se desenvolveu muito e hoje é reconhecido internacionalmente", diz Niemeyer, que também produziu o Hollywood Rock, o show da Anistia Internacional em 1988 e trouxe artistas importantes ao Brasil, como Bob Dylan, Nirvana, Red Hot Chilli Peppers, Eric Clapton e Paul McCartney, que, em 1990, levou 184 mil pessoas ao Maracanã, o maior público pagante de um show musical até hoje. O ex-Beatle voltaria novamente ao Brasil para tocar em São Paulo e Curitiba, também por iniciativa de Niemeyer, que, em 1993, assumiu a presidência da gravadora BMG, de onde saiu 12 anos depois. Retornou aos espetáculos ao trazer o DJ Moby para quatro apresentações no Brasil, no ano passado.

Apesar do fascínio que o U2 exerce onde quer que se apresente, o show dos Rolling Stones, na noite de 18 de fevereiro, atraiu muito mais atenção que as apresentações dos irlandeses, talvez porque era gratuito. Mais de 1 milhão de pessoas estiveram na praia de Copacabana, acompanhando o show por telões instalados em 16 torres de som ao longo de 600 metros. Foi montado um esquema semelhante ao do réveillon, com equipes médicas e policiais percorrendo a praia.

"O maior trabalho era acertar o esquema da vinda dos artistas e conseguir patrocínio para arcar com os custos. O Rio de Janeiro já estava totalmente preparado para esse tipo de espetáculo. Meses antes o Lenny Kravitz havia se apresentado ali mesmo para 400 mil pessoas. Quem vai a esses shows quer se divertir", considera Niemeyer, que aposta na longevidade dos megashows: "A apresentação ao vivo não acaba porque desperta sensações únicas nos artistas e no público, além de ser um termômetro do mercado".

Valor Econômico - Empreendedores Culturais

Paraty, agora muito mais iluminada


22/09/2006

Divulgar a literatura brasileira no mercado internacional, criando uma atividade comercialmente interessante para Paraty. Foi o que levou o casal Liz Calder e Louis Baum a desenvolver a idéia de movimentar a bela cidadezinha do Sul fluminense com uma festival literário nos moldes dos que se promovem todos os anos em Hay-on-Wye, no País de Gales; em Edimburgo, na Escócia, ou em Mântua, na Itália. Sem ligar para as críticas quanto à distância de Paraty do Rio de Janeiro (248 km) ou de São Paulo (300 km), nem em relação ao notório desinteresse dos brasileiros por literatura, a inglesa Liz conseguiu trazer escritores do mundo inteiro, como Salman Rushdie, Ian McEwan, Toni Morrison, Eric Hobsbawn e Paul Auster, para o que viria a se tornar o mais simpático evento literário abaixo do Equador.

Bel Pedrosa/Folha Imagem Liz Calder: "O processo é gradual, mas há um impacto. Quem visita Paraty divulga a literatura do país, aumentando o interesse"

Uma das fundadoras da editora Bloomsbury, Liz Calder apostou no charme da pequena cidade de 33 mil habitantes no litoral fluminense como garantia do sucesso da Feira Literária Internacional de Parati (Flip). Fascinada pelo Brasil, ela já o era desde a década de 1960, quando morou em São Paulo com o primeiro marido e os filhos pequenos. Desde 1990, quando conheceu Paraty a convite do velejador Amyr Klink, ela e Louis passam três meses por ano na cidade. As temporadas de descanso acabaram. Há quatro anos eles dedicam parte de seus dias em Paraty aos preparativos para receber os escritores que vêm participar da Flip.

A organização, que envolve, em média, cerca de 600 moradores da cidade, é uma das chaves para criar a atmosfera de harmonia e intimidade entre público e escritores durante a feira, que têm atraído 12 mil visitantes à cidadezinha fundada no fim do século XVII. A beleza natural da região, celebrada pela qualidade da cachaça local, as ruas com calçamento em pé-de-moleque e o casario preservado do centro histórico são fatores determinantes para o sucesso da Flip, afirma Liz. Mesmo lotada, a cidade suporta bem a chegada de multidões que dão aos escritores tratamento de pop star. O encantamento não é prejudicado sequer pelas freqüentes chuvas, que já alagaram as ruas do centro histórico enquanto a feira se achava em pleno movimento.

Da primeira feira participaram 27 escritores. Na última, foram 38, número que deverá ser mantido, pois a estrutura de Paraty não comporta um evento maior. "Acho que chegamos ao tamanho ideal. Mais do que isso, acaba com o clima de intimidade. Para receber mais escritores seria necessário montar uma feira em locais maiores, como Ouro Preto, por exemplo", sugere Liz, satisfeita com os resultados depois de quatro anos de Flip.

"O processo é gradual, é lento, mas já há um impacto internacional. Escritores, editores e jornalistas que visitam Paraty divulgam a riqueza literária do Brasil, aumentando o interesse no exterior por traduzir autores brasileiros em outros idiomas. Na esfera brasileira, não podemos esquecer das atividades paralelas aos debates, como as oficinas de literatura, que vêm revelando novos talentos, e a Flipinha, a programação infantil, que visa a formação de novos leitores", destaca Liz.

(Olga de Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Globalização

O verbo transitivo

Por Olga de Mello e Robinson Borges, para o Valor
18/08/2006

Os ciclos de intensificação das relações internacionais, como a globalização de hoje, têm um componente cultural evidente, que reflete, sobretudo, o peso econômico e político dos países dominantes. Ou de um só, como se afirma em análises da amplitude que ganharam nos últimos tempos as influências americanas e, com elas, a extensão sem precedentes do interesse pela língua inglesa, especialmente no mundo dos negócios. Mas o idioma até agora visto como de utilidade universal praticamente exclusiva também já é encarado apenas como uma das necessidades básicas para o êxito, ou a sobrevivência, no mundo corporativo, que vai abrindo espaço para a valorização de currículos nos quais constem conhecimentos de outras culturas e línguas.

Moacyr Lopes Jr./Folha Imagem Cultura em disseminação: o dragão circula pela avenida Paulista, antes de ser exibido nas festas do ano novo chinês,no bairro paulistano da Liberdade

Um meticuloso estudo sobre o aprendizado do inglês no mundo, intitulado "English Next", sustenta que o inglês continuará universal, mas revela que a partir de 2016 - quando for falado por 2 bilhões de pessoas -, haverá um declínio no interesse pela língua. "Será vantajoso aprender idiomas como o mandarim e o árabe e ter noções da cultura de seus interlocutores", observa David Graddol, autor da pesquisa recém-concluída, realizada a pedido do British Council. "A influência econômica e política da China começa a ser sentida fortemente na América Latina, na África e na Ásia. Não se pode ignorar a velocidade com que o chinês pode vir a se transformar em um fenômeno global."

Em 2010, o inglês terá sua relevância no mundo dos negócios na casa dos 28% em relação às outras línguas. Logo atrás estará o mandarim, com 23%. Com uma grande diferença em relação aos dois primeiros colocados estarão o japonês (5,6%), o espanhol (5,2%), o francês (4,2%) e o português (3,4%), segundo o "English Next". Até a hegemonia do inglês na internet deve ser reduzida. Em 2000, 51,3% dos acessos na rede eram feitos em inglês, contra 5,4% em chinês. Mas apenas 32% dos acessos em 2005 foram em inglês, e 13% em chinês.

Luciana de Jong, diretora comercial da Comissaria Ultramar, empresa de logística de transporte internacional, percebeu a mudança e está no segundo período de chinês básico na PUC-Rio. "Sou a mais velha da turma. Temos muita gente mocinha, buscando a nova linguagem de negócios", diz. A executiva decidiu aprender a língua no fim do ano passado, quando estava na Ásia. "Falo francês, espanhol e holandês, além de inglês, mas percebi que não é suficiente, pois o comércio com a China só tende a aumentar", calcula.

Tanto headhunters quanto lingüistas, ouvidos para o estudo encomendado pelo British Council, dizem que, diante dessas evidências, para se destacar no universo corporativo melhor será seguir o exemplo de Luciana e preparar-se para a nova ordem mundial, que deve promover uma onda de exclusão lingüística para os desatentos. Isso porque o monolingüismo agoniza - mesmo para quem fala inglês- e o bilingüismo serve apenas para o início da conversa. A tendência é toda voltada para o multilingüismo. De fato, na União Européia, com a criação de uma comunidade de várias línguas e culturas, o multilingüismo é um fato irreversível. Nos EUA, a hispanização traz novas realidades e expectativas. "Na pós-modernidade, o multilingüismo é a norma e as identidades são mais complexas, fluidas e contraditórias", explica Graddol.

Para ele, entre os interessados no aprendizado de chinês, poucos têm o inglês como língua materna, fato preocupante num cenário em que o monolingüismo está prestes a se extinguir entre a elite dos homens de negócio. "Quem nasceu falando inglês se acomoda, o que deixa os países ricos em desvantagem perante os outros", afirma Graddol. Ele observa, por exemplo, que a importância econômica do Brasil já alterou o status global do português. "É recomendável que os investidores em países lusófonos da África aprendam português também", acredita Graddol, que também destaca o crescimento do ensino de espanhol.

Fabiano Accorsi/Folha Imagem Migrações também explicam: o vaivém demográfico ajuda a dar novo ritmo à difusão de idiomas como o chinês (na foto, crianças de famílias chinesas em escola de São Paulo)

De acordo com o vice-presidente do British Council no Brasil, Michael Thorton, britânicos e americanos são tradicionalmente resistentes ao aprendizado de outros idiomas, mesmo depois que sua língua, agora de uso universal, deixou de "pertencer" aos anglo-saxões e passou a ser falada de diferentes maneiras.

Thorton compartilha da opinião exposta por David Crystal em "A Revolução da Linguagem" (Zahar), de que o inglês é uma das línguas que mais se apropria de palavras estrangeiras. "As línguas se modificam e a globalização acelera esse processo. Verbos como deletar, que vem do latim, surgem no português como se fossem anglicismos, mas são apenas uma retomada das origens", comenta Dinah Callou, do departamento de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nesse cenário, aprender o mandarim vai subindo para o topo das prioridades. Mas também é conveniente dar-se atenção ao espanhol e ao árabe, que podem se tornar suficientemente importantes em algumas regiões do mundo, para incomodar a supremacia do inglês. Apesar da relevância proporcional do japonês e do francês, esses dois idiomas não desfrutam mais do status de outros tempos.

O espanhol avança rápido e já tem a mesma proporção do inglês em termos de falantes nativos - é o idioma de aproximadamente 380 milhões de pessoas no mundo, além de outros 100 milhões que o falam como uma segunda língua. Pelo número de usuários, já é a terceira língua do mundo. Na última década, especialmente, a demanda por cursos de espanhol cresceu em todo o mundo. Nos EUA, a língua já desafia o inglês. Há cidades com predominância da língua de Miguel de Cervantes sobre a de Shakespeare. "O espanhol também tem se expandido em importância econômica, tanto nos EUA quanto na América Latina", mostrou a pesquisa, pois é uma língua internacional e idioma oficial de 21 países.

O árabe também tem conquistado importância econômica maior no mundo global como efeito colateral do crescimento demográfico mais rápido entre as populações que o têm como idioma nativo. Mas também é notória a expansão de seu uso em outros lugares, o que lhe dá um certo status transnacional, diz o estudo encomendado pelo British Council.

Roberto Machado, diretor da Michael Page International no Rio, empresa de colocação de executivos, observa que quem conhece os idiomas dos países emergentes pode ter um diferencial na carreira a médio prazo. "O volume de negócios com a China teve aumento significativo e quem vai trabalhar naquele país deve procurar fazer um curso de chinês. Inglês não é mais diferencial. Existe procura grande também por profissionais que tenham fluência em espanhol", diz Machado.

As projeções apontam que o mandarim é uma língua na mais pura ascensão. De acordo com Graddol, o setor de serviços chinês responde por cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que cresce a 10% ao ano. O segmento promove sempre demanda maior por línguas, pois exige melhor nível de comunicação do que o setor industrial. O relatório também revela grande interesse pela língua chinesa na Ásia, na Europa e nos EUA. Não por acaso, o governo chinês abriu o primeiro Instituto Confúcio, de promoção e divulgação do ensino do mandarim, na Coréia, em 2004. Atualmente, existem sedes do instituto em diversos países, como Quênia, Austrália, EUA, Dinamarca e Portugal.

Em 1995, havia cerca de 5 mil estrangeiros inscritos para as provas de proficiência em chinês que são aplicadas anualmente no mundo pela Universidade de Pequim. Em 2005, cerca de 40 mil estrangeiros se inscreveram para os exames. Atualmente, estima-se que 30 milhões de pessoas estejam estudando mandarim. As expectativas do governo chinês são de que esse número chegue a 100 milhões em poucos anos.

O crescimento do ensino de mandarim no Brasil começou com a vinda de empresas chinesas para o país e se intensificou a partir da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China em 2004. Foi nessa época que Victor Key Harada e três sócios abriram o curso Mandarim, que acaba de estabelecer sua segunda filial na capital paulista. A maioria dos alunos é de profissionais de comércio exterior, administração, engenharia, direito e relações internacionais. Também há procura de estudantes secundaristas, que já pensam em seus futuros currículos.

Até o fim deste ano, a chinesa Yang Aiping inaugura a quarta filial do Centro Cultural China-Brasil, em Brasília. Professora de línguas, há oito anos ela chegou ao Rio, a caminho de Washington, onde ia fazer uma especialização em inglês. Apaixonou-se pelo Brasil, ingressou no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e passou a ensinar português para chineses e mandarim para brasileiros. Publicou cinco livros destinados ao ensino de chinês a brasileiros antes de, em 2004, montar o curso, que hoje tem 12 professores, todos chineses, e 200 alunos nas três filiais cariocas. De início, executivos, advogados e diplomatas eram a maioria dos alunos. Hoje não existe um perfil definido e uma das turmas é de crianças. "Português é mais difícil do que mandarim. O curso básico tem dois anos e quem termina sai com um vocabulário mínimo de 500 palavras", afirma Yang.

Depois do inglês, o curso de chinês é um dos mais procurados no Instituto de Pesquisa de Línguas (Ipel) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A dificuldade no aprendizado desestimula alguns alunos, diz a coordenadora, Márcia Lobianco Amorim, mas a maioria persiste, por entender que está fazendo um acréscimo importante ao currículo. "O imediatismo leva muita gente a acreditar que em um semestre sairá falando chinês. Quem está aprendendo por diletantismo, desiste. Fica quem quer investir na carreira."

Uma das especialidades que tem grande número de inscrições, na PUC-RJ, é a de chinês instrumental para negócios. "É específico para quem vai viajar ou morar na China, para profissionais liberais de grandes empresas."

Segundo Machado, da Michael Page, houve uma estabilização na importância do conhecimento de línguas européias, como alemão, francês e italiano. "Muita gente está se antecipando às exigências do mercado e investe no conhecimento de chinês e russo. Espanhol é um idioma em alta, principalmente por causa da América Latina. A tendência do mercado é buscar profissionais com boa vivência em suas especialidades, mas conhecer outra língua, principalmente quando se está fazendo negócios, é um facilitador", reconhece.

Os movimentos migratórios, que têm crescido nos últimos anos, também influem no cenário linguístico. Entre 1960 e 2000, 3% da população mundial (175 milhões de pessoas, pouco menos do que a população brasileira) mudaram de país em busca de uma vida melhor. De acordo com Graddol, em Londres, uma das cidades onde é maior a variedade lingüística, falam-se mais de 300 idiomas nas escolas. No entanto, com o crescimento das economias emergentes, muitos exilados em países desenvolvidos estão voltando aos seus países de origem com filhos nascidos e criados em outra língua. "Essas crianças enfrentam problemas de identidade. Muitas vezes, integrantes dessas famílias têm a sensação de que pertencem a outro lugar", comenta Graddol.

Essa sensação se torna cada vez mais comum com a globalização intensificada. O headhunter Robert Wong aprendeu mandarim em casa. Nascido na China, veio para o Brasil aos 3 anos e não encontrou dificuldades em conciliar o uso dos dois idiomas. Quinze anos atrás, recomendava a executivos que aprendessem inglês, uma língua latina e uma língua oriental.

"Se quisessem um investimento de curto prazo, deveriam aprender japonês. Se preferissem um investimento a longo prazo, que estudassem chinês. No entanto, o chinês passou a ser importante bem antes do que imaginava", reconhece Wong, que não vê diminuição do interesse pelo inglês em termos absolutos: "Os anglo-saxões impuseram sua impressão digital no mundo, reforçando seu domínio de uma forma simpática, com a disseminação de sua cultura, de sua literatura. O Ocidente se acostumou à música popular em língua inglesa, ao cinema falando inglês. E na China, na Rússia, até em Cuba, os contratos são redigidos em inglês".

Para Wong, o declínio do inglês ainda está distante. Os próprios chineses são um dos povos que mais estudam o idioma. Se tivesse que recomendar o aprendizado de idiomas estrangeiros a executivos brasileiros, Wong continuaria apostando no chinês. Para ele, o bom executivo pode até se expressar por meio de um intérprete, mas é essencial conhecer um pouco da cultura do país onde se fará negócios. "Durante a Copa do Mundo, todos viram o intérprete japonês do Zico, que tentava imitar os gestos do técnico quando ele passava instruções para os jogadores. Mais do que um conhecimento profundo do idioma, quando ele é tão diferente da língua materna, é necessário desenvolver a sensibilidade, a flexibilidade, a capacidade de adaptar-se e adequar-se à cultura do outro país", diz.

Wong lembra que os orientais não têm formas diferentes de encarar o mundo corporativo. Na década de 1980, ele morou alguns anos na China, que havia acabado de reatar relações com o Japão. "Era comum que executivos japoneses de grandes empresas, antes de começarem a trabalhar na China, vivessem no país por períodos longos, de até dois anos, apenas para compreenderem a cultura local. Era um investimento em formação, para que soubessem criar bons relacionamentos comerciais."

Historicamente, as línguas vivem seu apogeu e depois entram em declínio. O grego, por exemplo, foi a língua mais disseminada entre as nações após a criação do mundo helênico por Alexandre Magno. Na Idade Média, o latim passou a ser língua franca e deu origem a muitas línguas modernas, como o português e o espanhol. Durante a Renascença, o italiano tornou-se o idioma mais difundido, por causa da força do comércio, da arte e da música. Durante as descobertas marítimas, o português foi também muito divulgado, mas ,com o declínio da economia portuguesa, cedeu espaço ao espanhol, por causa do domínio hispânico na ocupação de novas terras. Com a Revolução Francesa, o francês tornou-se o idioma da elite e a Revolução Industrial fez do inglês o que ele é hoje. Qual será seu futuro?

Continente Multicultural - Literatura


A atualidade de Shakespeare
Por que o gênio inglês continua intrigando, inspirando e gerando bons lucros para quem o vende?
Por Olga de Mello

Em 2002, a escritora britânica, J.K. Rowling, criadora da saga infanto-juvenil Harry Potter, tornou-se a pessoa que recebeu a maior quantidade de dinheiro em direitos autorais no mundo em 2002 – algo em torno de U$ 300 milhões, não apenas por seus livros, mas pelo lançamento do primeiro filme baseado nas aventuras do bruxinho. É de outra inglesa, a falecida Dame Agatha Christie, “mãe” de detetives de raciocínio agudo como Hercule Poirot e Miss Marple, o título de escritor de ficção que mais vendeu no planeta. Suas 78 novelas policiais tiveram 2 bilhões de exemplares publicados em 44 idiomas, o que garante a seus herdeiros quase U$ 4 milhões anuais apenas em royalties. Somas de encher os olhos dos leitores de best sellers, mas que não impressionam os admiradores do autor indiscutivelmente mais celebrado no mundo. Um levantamento da Revista Forbes, em 2004, estimou que herdeiros de William Shakespeare, caso existissem, teriam direito a uma renda anual mínima de U$ 15 milhões em royalties, calculando-se apenas um dólar por exemplar vendido e sem computar a quantidade adquirida por bibliotecas e escolas. Afinal, somente em território americano, naquele ano, haviam sido vendidos 657 mil títulos de Shakespeare. Um sucesso póstumo que dificilmente os crimes “cometidos” por Dame Agatha ou o universo mágico concebido por Rowling merecerão.

Traduzido em 119 línguas, incluindo a linguagem de sinais e em Klingon – o idioma de alienígenas da série de televisão Jornada nas Estrelas -, o inglês William Shakespeare é o dramaturgo com o maior número de peças levadas para o cinema – mais de 350 versões fiéis ou baseadas em suas criações. Segundo o crítico Harold Bloom, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente, superado apenas por Jesus Cristo. Bloom declara abertamente sua admiração pelo poeta que, além de criar palavras novas e expressões na língua inglesa, modificou a estrutura da dramaturgia ocidental e, de acordo com o crítico, inventou o que hoje consideramos a personalidade humana, dando relevância ao monólogo interior dos personagens, às reflexões e às emoções. Mesmo quem não compartilha da mesma devoção que Bloom devota a Shakespeare não pode negar sua popularidade. São incontáveis as montagens amadoras e profissionais de suas peças, em adaptações modernizadas ou tentando manter fidelidade à estrutura elizabetana. Por que um poeta morto há exatos 390 anos, que deixou uma obra de 154 sonetos e 37 peças teatrais completas, continua interessando a leitores de um século que mal têm tempo para assistir a encenações de seus dramas?

“Shakespeare entusiasma porque fala de amor, de ódio, de paixões, de inveja, ciúme, do medo, da morte, do eterno, de tudo, enfim, que compõe o imaginário humano”, acredita Adriana Falcão, que acaba de escrever uma novela recriando a comédia Sonhos de uma noite de Verão, que integra a coleção Devorando Shakespeare, da Editora Objetiva. O primeiro volume, já lançado, é Trabalhos de Amor Perdidos, recontado em prosa pelo cineasta Jorge Furtado, um apaixonado por Shakespeare, que transpôs para a Nova York de hoje as aventuras de quatro homens que, no original, decidem isolar-se do mundo para dedicar-se aos estudos durante três anos, mas têm os planos frustrados ao conhecerem e se apaixonarem por quatro jovens. Adriana levou a ação de Sonhos de uma noite de Verão para o carnaval de Salvador. No terceiro volume da série, que deve ser lançado no segundo semestre deste ano, Luís Fernando Veríssimo situará a trama de Noite de Reis em um salão de cabeleireiro em Paris, usando um papagaio como narrador, revela a gerente editorial da Objetiva, Isa Pessoa, idealizadora da coleção. A única exigência aos escritores foi que trabalhassem em cima de comédias, com algum “desrespeito criativo”, o que seria impossível se as recriações se calcassem em dramas, acha Isa.

“A comédia permite a brincadeira sem ofender os puristas”, diz Isa Pessoa. Apesar da proposta de total liberdade para desrespeitar criativamente a obra do inglês, o convite deixou Adriana Falcão ressabiada. Seu conhecimento de Shakespeare era o de quem já havia assistido a algumas peças, lido alguns poemas, mas tinha a menor pretensão de se apresentar como uma especialista na criação literária do Bardo. Animou-se com a idéia de juntar deuses gregos e orixás do candomblé em dúvida quanto à existência de vida terrena, brincando com elementos como o tempo, a sorte, as coincidências e o destino.

Sonho é uma peça alegre, que fala de amor, traição, ciúme, farsa, fantasia. As trocas de casais enamorados se encaixam perfeitamente nos relacionamentos fugazes estabelecidos no carnaval. Os amores de carnaval, atualmente uma constante entre jovens que ‘ficam’, que namoram apenas durante uma festa, duram pouco e não deixam marcas profundas nos amantes. Parece muito com os feitiços que são lançados sobre os personagens do Sonho de uma Noite de Verão” , diz Adriana.

A simples transposição da peça para os dias atuais era possível, porém Adriana quis criar um novo foco de interesse paralelo aos encontros e desencontros amorosos entre os casais. Assim, os deuses e seres fantásticos decidem misturar-se aos humanos, disfarçando-se com as fantasias que os mortais vestem durante o carnaval. Sem a menor solenidade, os personagens shakespereanos caem na folia e descobrem que os humanos são muito divertidos. “Para encarar o desafio de mexer em Shakespeare eu precisava, pelo menos, caminhar por um terreno seguro. ‘Sonhos’ era a peça que eu mais conhecia dele. Gosto muito do texto, das armadilhas que os personagens criam uns para os outros, da leveza da história, que está inteirinha na adaptação. Quem leu, vai reconhecer a peça na novela. Quem ainda não leu o texto vai conhecer a história a partir de minha adaptação”, afirma Adriana.

Jorge Furtado declarou publicamente sua afinidade com Shakespeare ao usar um de seus sonetos como elemento da trama do filme O Homem que Copiava. O fascínio começou na adolescência, a partir da leitura de uma edição bilíngüe de 24 Sonetos, traduzidos por Ivo Barroso. As peças, a princípio, não o entusiasmaram até deparar-se com a tradução de Millôr Fernandes para Hamlet, que passou a considerar “o melhor livro do mundo”. Com a bardolatria já incorporada, escolheu recontar Trabalhos de Amor Perdido pois esta, ao lado de A Tempestade, sonho de Uma Noite de Verão e As Alegres Comadres de Windsor, é um das quatro peças cuja criação é creditada totalmente a Shakespeare.

“A maioria de seus trabalhos baseou-se em crônicas, lendas, poemas e até em outras peças teatrais. Só o livro Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda, que reúne textos de 1577, serviu de base para treze peças”, conta Furtado, que fez de seu romance um verdadeiro guia para a obra de Shakespeare, incluindo até a relação dos 900 personagens que têm nome nas peças do dramaturgo – grupos anônimos de soldados, elfos, fadas, espectros, nobres, serviçais, demônios, músicos, mascarados e mensageiros, que tomam parte nas encenações são apenas listados, mas não citados individualmente. O didatismo se espalha por todo o livro, que tem um tom de almanaque, o que é proposital, informa Furtado.

“Minha preocupação era em falar para quem nunca havia lido sequer uma peça de Shakespeare. Por isso, resumi os enredos de todas as peças citadas no livro, mesmo as mais conhecidas, como Hamlet. Deu muito trabalho, mas foi também uma desculpa muito boa para eu ler mais Shakespeare ainda, embora alguns especialistas possam vir a discordar de algumas informações que eu forneço”, conta.

As curiosidades a respeito do poeta surgem por todo o texto de Furtado, que transformou o retiro para estudos dos jovens da peça original no encontro de estudantes estrangeiros que ganham bolsas de estudos para desenvolverem projetos sobre Shakespeare. No epílogo, ele discorre sobre a peça, a primeira a ser publicada com o nome de Shakespeare, em 1598, e que talvez tenha o primeiro final aberto no teatro ocidental, quando os casais apaixonados marcam um encontro para dali a um ano, uma inovação para a época, quando o período abordado em uma encenação teatral não deveria ultrapassar uma semana. A sonoridade do título em inglês, Love’s Labour’s Lost, também esconde o duplo sentido de “trabalhos de amor”, que seria um eufemismo para atividade sexual. Ao falar da paixão, a peça defende a tese de que o amor e o romance são mais importantes como experiência de aprendizado do que a ciência e o estudo, “satirizando ainda a linguagem empolada dos autores”,diz Jorge Furtado.

“Shakespeare tinha a capacidade de divertir, compondo comédias com diálogos ferinos que são verdadeiros duelos verbais, enquanto busca a reflexão quanto a sentimentos humanos que nos angustiam. Se alguém quer falar em ambição, lembra-se de MacBeth, se pensar na ausência da figura paterna, recorda-se de Hamlet. Ciúme e inveja estão em Otelo. E nas comédias ele mostrava toda a sua irreverência, criando trocadilhos maliciosos, brincando com amigos e inimigos, citando-os em situações corriqueiras. Hoje, tudo que ele escreveu parece ser encarado – e encenado – como se fosse um texto sagrado, o que tira um pouco da espontaneidade das situações”, acredita Jorge Furtado.

Valor Econômico - Entrevista Paulo Lins

"Ninguém quer ser bandido"


14/07/2006


Valor: A ausência de política de geração de renda é responsável pelo crescimento da violência?

Nelson Perez/Valor Paulo Lins: "Na favela, são os filhos dos que não conseguiram entrar no mercado de trabalho que vão para o crime"

Paulo Lins: Ninguém quer ser bandido. É um processo lento e doloroso que começa muito cedo, aos 10, 12 anos. Quem passou dos 15 anos sem se envolver com o crime não será bandido. Só entra na criminalidade quem está abaixo da linha da miséria. Na favela há diversos classes de moradores: funcionários públicos e militares de baixas patentes, serventes, empregadas domésticas, operários, mão-de-obra não-especializada. São os filhos dos que não conseguiram entrar no mercado de trabalho que vão para o crime. Sem estrutura familiar, esse menino fica mau, vai assaltar, vai matar, vai torturar.

Valor: Como fazer a inclusão sócio-econômica dos negros e dos pobres?

Lins: Pela educação. Antes mesmo que o governo instituísse as cotas nas faculdades públicas, elas já existiam nos cursos de ciências humanas e no magistério. Isso porque o magistério ficou desvalorizado e, com a deterioração do ensino, isso virou carreira para os pobres. A elite continua majoritária nos cursos tecnológicos, na medicina, na engenharia, na informática. Pelas cotas, a universidade assume sua responsabilidade de reparar o ensino deficitário.

Valor: Críticos do sistema de cotas dizem que esses alunos são discriminados pelo mercado de trabalho.

Lins: De alguma forma a vida sempre melhora para quem consegue entrar para a universidade. Só pude estudar porque minhas irmãs mais velhas trabalharam para que eu fosse ao colégio. Os projetos sociais, com pouquíssimas exceções, querem ensinar profissões às crianças, não que elas façam carreira universitária. Isso só desestimula o aprendizado. É verdade o que disse o jogador francês [Thierry Henry]. Quem da seleção brasileira teve estudo? Por que a classe média não entra na seleção? Porque a classe média estuda, vai para a universidade. Os talentosos brasileiros que ganham fortunas na Europa somam apenas algumas dezenas de jogadores.

Valor: "Cidade de Deus" contava o surgimento de uma comunidade e o aumento da violência. Seu novo livro vai se concentrar em algum grupo de moradores?

Lins: São duas narrativas, uma na primeira pessoa, transcorrendo no momento atual; a outra na terceira, contando o que ocorre no início do século XX. Também vai haver uma história anterior, com contos sobre a escravidão, em cima dos relatos dos personagens. O fio condutor é uma pesquisa de mestrado de uma moça, que faz um estudo de literatura dos sambas da década de 20 e os do bloco Cacique de Ramos da atualidade.

(Olga Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Entrevista Ricardo Piglia

Um falso mentiroso

Por Olga Mello, para o Valor
28/07/2006


A sinergia entre autobiografia, ensaio e história pode ser um caminho para a literatura contemporânea, acredita o escritor Ricardo Piglia, um dos mais aclamados ensaístas e romancistas da atualidade. "Não é o único, mas é o caminho que mais me interessa", disse ao Valor esse argentino de 61 anos que consegue trazer a ficção para dentro dos estudos literários, os quais, por vezes, pontua com intervenções de seu alter ego Emilio Renzi, personagem presente em diversas de suas obras. A combinação de fatos reais com ficção está dando certo: rendeu-lhe o Prêmio Planeta, em 1997, por "Dinheiro Queimado" (Companhia das Letras), em que conta um assalto a banco em 1965 e o cerco da polícia aos ladrões. No mês que vem, Piglia estará na Feira Literária de Paraty (Flip), onde vai falar sobre o quanto a literatura reflete a vida de quem a ela se dedica - seja como escritor ou leitor. Tese que ele já apresentou em livros, como a coletânea de ensaios "Formas Breves", lançada em 2004 pela mesma Companhia das Letras.

Cleo Velleda/Folha Imagem Em seus livros, Ricardo Piglia ultrapassa o limite dos gêneros, trazendo traços de ficção até para seus elogiados ensaios

No epílogo de "Formas Breves", Piglia afirmava que a crítica é a forma moderna da autobiografia. "A pessoa escreve sua vida quando crê escrever sobre suas leituras. Não é o inverso do 'Quixote'? O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê", dizia no livro. No ensaio "O Último Leitor", a ser lançado em breve no Brasil, a vida e a leitura voltam a ser abordadas, sob novo ângulo.

"Busquei reconstruir a figura do leitor em situações distintas e em diferentes épocas. Segui os passos de Franz Kafka, de Che Guevara, de Jorge Luis Borges, e também os rastros de figuras imaginárias e muito intensas no papel de leitores, como Molly Bloom, de James Joyce; Phillip Marlowe, de Raymond Chandler; ou Anna Karenina, de Tolstoi. É um livro que escrevi ao longo de muitos anos, uma jornada pessoal pelas recordações e pelos sinais de minha própria experiência de leitor", diz Piglia, que atualmente trabalha no romance "Blanco Nocturno", uma história de amor passada na época da guerra das Malvinas, que tem um Emilio Renzi de 35 anos como protagonista.

"Hoje em dia, ele está com cerca de 60 anos. Para mim, Renzi é uma voz particular, um modo de ver a realidade. Renzi tem uma visão irônica sobre o mundo e sobre ele próprio. Sempre me divirto com suas aparições", esclarece Piglia.

Em "Blanco Nocturno" (o título remete à utilização de lentes especiais pelos soldados ingleses para enxergarem alvos durante a noite), Emilio Renzi se muda para uma casa de subúrbio, emprestada por um amigo que saiu em viagem, nos primeiros tempos da guerra que, por um breve momento, levantou o brio de um povo que sofria com a repressão violentíssima durante a ditadura militar que matou milhares de pessoas.

"Ele se isola, sente-se como um Robinson Crusoe, registrando os fatos em seus diários, vivendo escondido como se fosse um desertor. Na realidade, a novela acontece durante a guerra das Malvinas, mas a guerra não é o tema. Meu interesse foi trabalhar sobre o efeito dos fatos, mais do que sobre os fatos em si próprios. Trata-se de uma história de amor em tempos de guerra, algo que Hemingway mostrou em 'Adeus às Armas'. Além desse tema em comum, tem a noção de 'paz em separado', que é a chave em Hemingway e que surge como obsessão em Renzi, que se distancia da euforia generalizada que a guerra provocou na Argentina nas primeiras semanas e se mantém à parte."

"Blanco Nocturno" deverá estar terminado no próximo ano. A primeira versão já foi concluída, mas Ricardo Piglia acredita que escrever é, essencialmente, corrigir. Entre a primeira versão de "Dinheiro Queimado" e sua publicação passaram-se quase 30 anos. Durante esse intervalo, o escritor lançou outros livros, muitos entrelaçando o mundo real com a criação literária, algo que faz desde a década de 50, quando iniciou um diário que considera a história de sua relação com a linguagem. Nos cadernos, inventou uma vida diferente, o que teria tornado o diário uma espécie de romance, pois os acontecimentos descritos haviam ocorrido de outra forma. A superposição de realidade e ficção está presente em "Dinheiro Queimado": "Quase tudo ali foi inventado. Apenas as características dos personagens e a trama eram reais. Em 'A Invasão' há uma história, 'Mata Hari 55', que também foi trabalhada com a técnica de não-ficção".

Para Ricardo Piglia, é o cinema, hoje, na Argentina, que está mais ligado à realidade imediata do que a literatura: "Ao menos isso acontece com uma série de jovens cineastas que trabalham muito perto do documentário, dentro da perspectiva do neo-realismo italiano. Claro que também há outros cineastas argentinos maravilhosos, mais próximos de uma tradição literária, como é o caso de Lucrecia Martel ou de Martin Rejman".

Na literatura atual de seu país ele destaca Alan Pauls (autor de "Wasabi", lançado pela Iluminuras): "um excelente escritor das novas gerações, que é bem conhecido no Brasil, com diversas traduções. Pauls está dentro da melhor tradição da literatura argentina, embora tenhamos outros autores muito bons". Sobreviver de literatura na Argentina contemporânea sem fazer grandes concessões ao mercado, no entanto, é difícil, afirma Piglia, que também é professor de literatura da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

"Em meu caso, sempre ganhei a vida lendo e ensinando modos de ler", diz. E ressalva que não tem um método especial para escrever: "Sempre trabalho de manhã. Meu único segredo consiste em levantar cedo e deixar o telefone desligado até o meio-dia". Para sua formação como leitor e escritor, ele aponta as influências de Borges e Ernest Hemingway: "Dois grandes artífices da forma breve, grandes mestres da alusão e da prosa precisa". Acha difícil destacar "uns poucos nomes dentro da riqueza da literatura atual", mas revela sua admiração pelos americanos Don DeLillo ("Cosmópolis") e Phillip Roth ("O Complexo de Portnoy"), pelo mexicano José Emilio Pacheco ("Alta Traicion"), o espanhol Enrique Vila-Matas ("O Mal de Montano") e a conterrânea Sylvia Molloy ("Em Breve Cárcere"). Dos brasileiros, conta que se sente muito próximo da obra de Silviano Santiago ("Pátria Estranha") . "E também, como não poderia deixar de ser, admiro e releio continuamente Guimarães Rosa e Clarice Lispector." Reler, aliás, é um de seus hábitos. "Basicamente estou sempre relendo. Nos últimos dias, voltei-me para 'Moby Dick', de Herman Melville, um romance que li muitas vezes sempre com o mesmo assombro e a sensação de que estou lendo pela primeira vez."

Valor Econômico - Literatura

Empresas em tempo real

Por Olga de Mello, para o Valor
19/05/2006

Carros velozes, vida frenética, iates, mansões, luxo, roupas caríssimas, algumas drogas, sexo, muito sexo. Junte os ingredientes e uma pitada de tensão, mais um conflito moral, alguma espionagem e uma perseguição pessoal. Mexa bem e um novo thriller está pronto para ser servido a milhões de leitores. Se os milionários produtores de cinema, banqueiros e executivos dos romances dos hoje ultrapassados Harold Robbins, Arthur Hailey e Irwin Shaw pareciam distantes de personagens reais numa época em que homens de negócios se escondiam de flashes e manchetes de jornais, atualmente eles podem ser facilmente identificados: têm as feições de Donald Trump ou Martha Stewart. Cada vez mais, escritores como Stephen Frey e Joseph Finder situam suas tramas em grandes empresas muito parecidas com as que estão diariamente no noticiário.

Eduardo Knapp/Folha Imagem Em "Rapina", de 1995, Ivan Sant'Anna usou sua experiência no mercado financeiro para traçar um paralelo entre atividades lícitas e ilícitas

A diferença fundamental entre os atuais "thrillers corporativos" e seus antecessores é que as empresas agora não são relegadas a um mero cenário para a escalada profissional e pessoal de seus protagonistas, que lutam pela preservação de seus bons empregos e altos salários. Numa época politicamente correta, eles até sofrem dilemas morais, angustiados por seus erros de caráter, algo que não acontecia sequer em romances aclamados pela crítica literária, como "O Que Faz Sammy Correr?", de Budd Schulberg. Filho de um produtor de Hollywood, Schulberg causou sensação, em 1941, ao apresentar Sammy Glick, um jovem mensageiro de um jornal que ascende vertiginosamente, até presidir um estúdio cinematográfico, sem o menor pudor ético. A indústria do cinema, uma das mais lucrativas da maior nação capitalista do mundo, foi mostrada por muitos romancistas, incluindo Scott Fitzgerald, que morreu antes de concluir "O Último Magnata", cujo protagonista era claramente calcado na personalidade do produtor Irving Thalberg.

Schulberg e Fitzgerald jamais figuraram ao lado dos autores de thrillers, dos quais estavam distantes, tanto pela indiscutível qualidade literária quanto pelas modestas vendas, se comparados com quem ultrapassa a barreira de 60 milhões de exemplares, como John Grisham, especializado em tramas envolvendo advogados. O gênero tão desprezado pela crítica especializada produziu seus primeiros milionários a partir dos anos 1960. Foi com um personagem nitidamente inspirado em Howard Hughes que Harold Robbins conheceu o sucesso. Publicado em 1961, "Os Insaciáveis" traz a história de Jonas Cord, que fica riquíssimo aos 21 anos, tem paixão por aviação e decide incluir o cinema entre seus investimentos. Apesar de haver vendido mais de 50 milhões de livros em 40 países, Robbins jamais foi respeitado pela crítica (até seu tradutor brasileiro, Nelson Rodrigues, o chamou de "um momento da estupidez humana"), que se mostrava mais branda com seus competidores diretos, Irwin Shaw e Arthur Hailey.

"Hailey era um pesquisador, tinha alguma qualidade. Mas o melhor yuppie da literatura foi criado por Tom Wolfe, em a 'Fogueira das Vaidades'", aponta Ivan Sant´Anna, autor de três romances com trama no mundo corporativo, entre eles o aclamado "Rapina".

O operador de obrigações da Bolsa de Nova York, Sherman McCoy, protagonista de "A Fogueira das Vaidades", é um retrato exato de homens que Ivan Sant´Anna conheceu em 37 anos de trabalho no mercado financeiro. "Ele descreve perfeitamente aqueles homens muito vaidosos que gostam de ostentar sua própria riqueza, usando ternos de U$ 15 mil e gravatas de US 2 mil." Em "Rapina", publicado em 1995 pela Record, Sant´Anna traçava um paralelo entre as operações do mercado e as atividades de traficantes e seqüestradores cariocas. "Na verdade, 'Rapina' tem uma notável coincidência, como eu fiz questão de publicar na apresentação do livro, com fatos e pessoas reais. Muita gente se reconheceu no romance", diz, rindo, Sant´Anna, que não ambienta mais suas histórias no universo corporativo. "O público exige que o autor se repita, mas eu não quis ficar preso ao mesmo nicho." Atualmente, Sant'Anna trabalha em seu terceiro livro de não-ficcção, este sobre o atentado ao World Trade Center.

Ficar marcado como um escritor do gênero "corporative thriller" não agrada Joseph Finder, autor de "Paranóia" e "O Executivo", recém-lançado no Brasil pela Rocco. Ele costuma repetir, em entrevistas, que escreve apenas sobre pessoas comuns e seus empregos, utilizando pesquisas detalhadas sobre os ambientes em que as tramas se desenvolvem. Em "Paranóia", um jovem executivo faz espionagem industrial e se angustia por ter que ganhar a confiança de pessoas que considera decentes, até descobrir que a falta de escrúpulos é natural num mundo competitivo. O protagonista de "O Executivo" dirige uma empresa da qual uma pequena cidade inteira depende e sofre problemas de consciência por ser obrigado a despedir boa parte de seu pessoal.

A humanização desses personagens, às vezes homens sem grande cultura, como o executivo de "Paranóia", que não tem a menor idéia a respeito de Sammy Glick, a quem é comparado por um colega, passa também por uma redução das peripécias sexuais dos protagonistas. O diretor de empresas do "Executivo" amarga um celibato de mais de ano, desde que enviuvou. Algo impensável para os personagens de Harold Robbins, como o anti-herói Jonas Cord, que não hesita dividir os travesseiros com a própria madrasta na véspera do enterro do pai.

Outro aspecto que passou por significativa mudança nos thrillers é o papel das mulheres nas tramas. Embora ainda continuem mencionadas enquanto objeto de desejo dos homens, elas são apresentadas como profissionais de carreira estabelecida, que não necessariamente utilizam o sexo para obter vantagens. Por vezes, ainda são relegadas ao papel de predadoras sexuais, como a vilã de "Revelação", de Michael Crichton, que acusa um concorrente de assédio sexual. Stephen Frey, que concilia as atividades literárias com a administração de uma corretora de valores, e que já foi vice-presidente de um banco, escolheu uma executiva que perdeu a guarda do filho pelo excesso de dedicação ao trabalho como protagonista de "O Sócio". Uma escolha acidental, já que, como o autor admite, precisava de um interesse romântico para o "sócio".

Admirador de John Grisham, detalhista ao extremo, Frey descreve didaticamente o comportamento no mundo corporativo e, como Joseph Finder, critica veladamente a falta de cultura e a ostentação da riqueza por meio de Porshes ou BMWs. Hábitos como consumo de drogas são mostrados como marca de fraqueza de caráter ou prova da vilania dos personagens. Adaptados aos tempos atuais, heróis ou heroínas acabam decepcionados com os parceiros amorosos que porventura encontram ao longo das histórias, preferindo permanecer sozinhos, enquanto se dedicam ainda mais aos negócios e - até com desvelo - às famílias.

Valor Econômico - Entrevista Marcos de Azambuja

O Brasil não conhece o Brasil


28/07/2006

Valor: Quais são as diferenças de percepção do Brasil?

Carol Carquejeiro/Valor Marcos de Azambuja, que foi embaixador na França e na Argentina: "Existe uma expectativa de prazer quando se fala em Brasil, percebe-se imediatamente a exuberância, na natureza, vitalidade, energia"

Marcos de Azambuja: Nosso primeiro registro, a carta de Pero Vaz de Caminha, é um primoroso trabalho de um repórter estrangeiro. Durante 200 anos, o país não teve capacidade para se perceber. Vinham pintores, cientistas, que apenas retratavam a natureza brasileira e consideravam o homem um mero acessório. A marchinha de Lamartine Babo, "Quem Foi que Inventou o Brasil?" nos convida a uma reflexão sobre este país que se definiu pelo que os demais falam de nós. Depois de algum tempo, passou a ser a invenção de quem está aqui dentro.

Valor: Como o Brasil é visto pelos estrangeiros?

Azambuja: O estrangeiro sorri quando se menciona o Brasil, existe uma expectativa de prazer quando se fala em Brasil. O que eles percebem, imediatamente, é a exuberância, seja na natureza, na vitalidade, na energia em estado puro que o povo demonstra pela cordialidade, na afetividade que domina a racionalidade. Tem ainda a musicalidade brasileira, o fato de as pessoas se exprimirem melhor cantando do que falando, de que se canta em qualquer reunião.

Valor: E os pontos negativos?

Azambuja: Os pontos negativos seriam a insensibilidade social, o hábito de viver com uma certa dose de periculosidade, sem ligar muito para a saúde, e a desordem intelectual.

Valor: Como o Brasil se percebe?

Azambuja: O Brasil é excessivamente severo consigo mesmo. É um país que toma como base de comparação econômica, cultural e social não os seus pares, mas as nações de Primeiro Mundo. A exigência é muito alta e a capacidade de autoflagelação maior ainda. O único resultado aceitável no futebol é o sucesso. O torcedor brasileiro é implacável. Da mesma forma, condena com veemência a corrupção e se atemoriza. O brasileiro é um detrator público de seu próprio país.

Valor: Os estrangeiros que vivem no Brasil também são críticos?

Azambuja: Nem tanto. A opção por ser brasileiro foi tão absoluta que os imigrantes abandonaram suas tradições. Nos EUA existem ítalo-americanos; na Argentina, anglo-argentinos. No Brasil, é diferente. Quem emigra, geralmente, deixa sua terra pressionado pela pobreza, pelo terror, pela intolerância, vai se recriar em outro lugar. Mas aqui o estrangeiro não conheceu uma resistência que o obrigasse a se identificar com seus compatriotas. Não havia necessidade de reter sua identidade nacional.

Valor: Os imigrantes adaptaram suas culturas ao Brasil?

Azambuja: O Brasil é fruto do sincretismo, que levou a esta composição social diversificada, à miscigenação. A feijoada é o Brasil, com sua mistura, que, no fim, tem um bom resultado. Por isso o Brasil é o mais interessante laboratório de convívio do mundo, com tantas diversidades étnicas e culturais. Se o Brasil não for possível, o mundo é impossível. O mundo futuro terá a nossa cara, a globalização está levando a um abrasileiramento do mundo.

(Olga Mello, para o Valor, do Rio)

Valor Econômico - Literatura

Vai-se o autor, fica o fantasma

Por Olga de Mello
30/06/2006

Em dezembro de 1941, Francis Scott Fitzgerald morria, deixando pela metade o romance "O Último Magnata". O manuscrito foi publicado acrescido de notas e um diagrama com o desenvolvimento da história, montado pelo escritor. Para críticos como Edmund Wilson, "O Último Magnata", mesmo não concluído, seria a obra prima de Fitzgerald. Sessenta anos mais tarde, fatalmente os herdeiros de Fitzgerald poderiam contar com o assédio de escritores interessados em concluir o romance inacabado e, talvez, criar novas tramas no estilo do autor, garantindo uma duvidosa qualidade para a continuidade da obra e polpudos lucros com as vendas para admiradores e curiosos.

Reprodução Alexandre Dumas: mais de 200 livros, produzidos com 73 assistentes

A voracidade de herdeiros - e do público - pelas seqüências literárias se faz notar a partir dos anos 1980. Em 1991, "Scarlett", a continuação da saga da protagonista de "E o Vento Levou", escrito por Margareth Mitchell em 1939, era lançado. Sua autora, Alexandra Ripley, fora escolhida pelos herdeiros de Mitchell, que dez anos depois levavam aos tribunais Alice Rendall, por contar a história de "E o Vento Levou" pelo ponto de vista dos escravos. Para voltar à lista de mais vendidos e escapar à acusação de plágio, Rendall fechou um acordo politicamente correto, doando uma quantia não revelada a um colégio de Atlanta muito procurado por alunos da comunidade negra.

Selecionar um autor que mantenha o prestígio de vendas de um escritor famoso é negócio tão sério que os herdeiros de Mario Puzo promoveram um concurso para escolher quem iria retomar a saga da família Corleone, iniciada em "O Poderoso Chefão". No entanto, contratar "ghost writers" para dar seqüência ao trabalho de escritores famosos não é um fenômeno típico do fim do século XX.

A arte de escrever a quatro - ou a muitas mãos - data de tempos pré-máquina de escrever. Para dar conta das encomendas de peças e novelas que recebia, o romancista francês Alexandre Dumas montou, em meados do século XIX, uma verdadeira fábrica de textos, gerando mais de 200 livros - que teriam até 37 mil personagens - auxiliado por 73 assistentes. Dizem que Dumas trabalhava lado a lado com seus colaboradores, que desenvolviam enredos sobre argumentos que ele imaginava. Mestre na criação de diálogos, perito em arrematar capítulos de folhetins que atiçassem a curiosidade dos leitores - técnica atualmente empregada em seriados e telenovelas - Dumas conquistou sua imortalidade artística pela qualidade de obras como "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Monte Cristo".

Na chegada do século XX, o escritor americano Edward Stratemeyer criou uma estrutura parecida com a de Dumas, ao idealizar coleções de livros infanto-juvenis que dispensavam autoria. "Ghost writers" se revezavam, sob os mais variados pseudônimos, para contar as aventuras de personagens de grande popularidade, entre eles os Hardy Boys e Nancy Drew, com a chancela da empresa Stratemeyer Syndicate. A identidade de muitos desses escritores permanece desconhecida até hoje, pois, por contrato, eles eram obrigados a manter-se no anonimato. As iniciativas isoladas sinalizavam, portanto, que a literatura - ainda que de puro entretenimento - alcançara um patamar industrial.

AP Robert Ludlum, 26 livros, mais de 200 milhões de exemplares: tudo bem combinado com quem escreveria a série "Covert One" depois de sua morte

É na década de 1960 que nasce um novo estágio do empreendimento comercial em que o livro havia se transformado: a franquia literária, aberta a partir da morte de Ian Fleming, o criador de James Bond, em 1964. Até então, Fleming vendera "meros" 20 milhões de exemplares das 14 novelas e alguns contos sobre o agente 007. Naquele ano foi lançado o filme "Moscou contra 007". Um ano depois, era publicado "O Homem da Pistola de Ouro", gerando rumores de que fora concluído pelo prestigiado romancista Kingsley Amis, que assinou, sob o pseudônimo Robert Markam, mais duas aventuras do agente 007. Enquanto Fleming escreveu algo como 14 novelas e alguns contos sobre Bond, o personagem rendeu mais 27 romances de espionagem, desenvolvidos por Amis, Christopher Wood, John Gardner e Raymond Benson, ao longo dos últimos anos.

Nem todas as franquias literárias são tão bem-sucedidas quanto a de James Bond, mas a perspectiva de aumentar ainda mais as fortunas herdadas é, provavelmente, a mola propulsora para o prosseguimento das carreiras de alguns escritores que já não habitam o planeta. Ou a capa dos livros traz o nome do personagem sobre o dos autores - caso da logomarca 007 - ou o autor, falecido, assina obras póstumas, dando crédito ao escrito-fantasma, que, assim, pode se revelar ao público e granjear seus próprios leitores. Alguns, como Andrew Neidermann, responsável por injetar vida na carreira pós-mortem de V.C. Andrews, que morreu em 1986 e, desde então, publicou 48 romances góticos. Neiderman é autor de "O Advogado do Diabo", que atraiu a atenção dos produtores de Hollywood e virou filme com Al Pacino e Keanu Reeves.

A autoria de além-túmulo é um negócio tão respeitado atualmente que Robert Ludlum deixou acertado que seus assistentes Patrick Larkin, Gayle Lynds e Philip Shelby escreveriam a série "Covert One" depois de sua morte. Autor de 26 livros com mais de 200 milhões de exemplares vendidos em 40 países, Ludlum morreu em 2001. A série está em seu oitavo volume, para glória do nome de Ludlum, e deleite de seu público, colaboradores e herdeiros.

Valor Econômico - Entrevista Hélio Jaguaribe

Marginalidade, um risco nacional

Por Olga de Mello, para o Valor
09/06/2006

Um país decepcionado com a corrupção na política, que sofre os efeitos de um crescimento insuficiente, sem projetos eficazes para reduzir as gritantes diferenças sócio-econômico-culturais de sua população, e que teve sua maior cidade paralisada pela ação comandada por bandidos, há duas semanas, precisa reagir imediatamente para recuperar sua capacidade de investimento. Uma dessas ações urgentes seria analisar a possibilidade de legalização do consumo de drogas, diz o cientista político Helio Jaguaribe, que defende a descriminalização de substâncias de uso proibido há mais de uma década.

Nelson Pérez/Valor "Este é um país em que os salários de professores são inferiores aos de empregadas domésticas", indigna-se Helio Jaguaribe, cientista político e membro da ABL

Fundador do PSDB, ocupante da cadeira de número 11 da Academia Brasileira de Letras (ABL), este carioca de 82 anos é critico do modelo neoliberal incorporado pelo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, "um homem de bem", que, pela sinceridade transmitida em seu discurso, levou o país a aceitar a tese de que ele nada sabia sobre a corrupção "nos moldes dos antigos bolchevistas soviéticos", na qual estão envolvidas muitas estrelas do PT. Amante de música clássica, "de Vivaldi a Wagner", Helio Jaguaribe é um cumpridor de hábitos metódicos, que considera o segredo de uma vida inteligente: "Assim sobra mais tempo para pensar". Levanta-se, de segunda a sexta-feira, às 6h30, para fazer uma caminhada de 4 quilômetros. De manhã, vai para o Instituto de Estudos Políticos e Sociais, que ocupa um casarão em uma rua silenciosa do Horto, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. À tarde, Jaguaribe prefere trabalhar em casa, exceto às quintas-feiras, quando participa das sessões da ABL. Foi em seu escritório no Instituto, no qual as instalações amplas abrigam estantes repletas de livros de economia, política e ciências sociais, que ele recebeu o Valor.

Valor: O Brasil tem condições de competir economicamente com outros países emergentes, como a Rússia, a China, a Índia?

Helio Jaguaribe: O Brasil não é mais emergente há tempos. Hoje, é apenas subdesenvolvido. O país ficou preso no discurso neoliberal e mal consegue crescer acima de 2% ou 4%.

Valor: Em que o Brasil errou?

Jaguaribe: Continuamos um país com aspirações de uma sociedade de bem-estar, nos moldes do norte da Europa, e salários muito abaixo do que se recebe naqueles países. É a velha máxima: o Brasil tem impostos suecos e serviços públicos angolanos. Taxas de juros altas, impostos altos, mas uma educação pública ainda inadequada para toda a população. E a educação é a base de tudo. Existe uma correlação linear entre o nível de vida e a miséria. Este é um país em que os salários de professores são inferiores aos de empregadas domésticas.

Valor: Quais mudanças levariam ao crescimento econômico do país?

Jaguaribe: De um lado, precisamos de uma drástica redução da taxa de juros e de uma política econômica que restrinja o crédito para o consumo, mas que o oriente para a produção. É necessário substituir este modelo neoliberal ao qual o governo atual se adaptou por um projeto desenvolvimentista não populista, permitindo que os recursos públicos excedentes sejam encaminhados para projetos sociais. Ao mesmo tempo, ou reduzimos as diferenças ou o Brasil será um país marginal. Quase todas as metrópoles brasileiras estão cercadas por bolsões de miséria. Nesses anéis de marginalidade o narcotráfico buscou refúgio. A situação atual ultrapassa o controle policial.

Valor: O combate ao narcotráfico seria, hoje, um problema político?

Jaguaribe: É necessário reconhecer que o mundo perdeu a guerra contra as drogas. A Lei Seca, nos Estados Unidos, só fortaleceu as gangues de contrabandistas na década de 1920. Precisamos decidir o que é mais grave: o consumo controlado das drogas ou a convivência entre os chamados mocinhos e bandidos nessa disputa. Naturalmente, uma medida dessa ordem não poderia ser tomada isoladamente, mas em conjunto com outros países da América do Sul, precedida por um amplo debate científico. A descriminalização da droga modificaria o quadro atual, o absurdo de termos supermilionários sob a vigilância de agentes penitenciários que sobrevivem com salários baixíssimos. Os traficantes estão protegidos das facções inimigas em fortalezas seguras, guardados por policiais pobres. Por sua vez, esses policiais pobres vivem em favelas, onde são perseguidos pelos traficantes que dominam essas áreas.

Valor: Como levar a população marginalizada, então, à produtividade e melhores condições de vida?

Jaguaribe: Precisamos de uma reforma urbana, de reestruturar as cidades e incorporar as populações marginais, criando ocupações para alguns, realocando outros em suas regiões originais. Ocupações que só podem ser inventadas pelo Estado, com algo como brigadas de trabalho. O Brasil necessita de reformas em suas estruturas urbanas, no controle das drogas, na educação e na política financeira. Além disso, deveria haver mudanças no sistema eleitoral e partidário. Não há conexão real entre os eleitos e o eleitorado. O voto distrital misto eliminaria essa distância. Outras modificações seriam a exigência de fidelidade partidária até o fim do mandato e uma fiscalização rigorosa dos partidos de aluguel, que só enfraquecem o sistema partidário.

Valor: As denúncias de corrupção dentro do PT abalaram a figura do presidente da República?

Jaguaribe: O Brasil tem uma taxa de corrupção pública elevadíssima, mas o PT inaugurou uma forma diferente de corrupção, semelhante ao que praticava o partido bolchevista na União Soviética - a subtração de bens públicos em nome de um projeto partidário, o que é execrável. Esse assalto não vai derrotar Lula, que será reeleito, mas vai derrotar o PT, o partido que tinha a bandeira da honestidade, que cumpriu uma grande tarefa histórica. Graças ao PT, as desigualdades sociais, a gigantesca percentagem de excluídos, foram canalizadas para reclamar democraticamente suas causas. O PT consolidou nossa democracia, mas, ao se aproximar do poder, quis tornar-se absoluto. Lula é um grande mito e por isso resiste à crítica. Dentro do simbólico, ele é o filho de um cortador de cana, um operário que chegou a presidente da República. Ele compensa com sua inteligência privilegiada a falta de uma educação sistemática. É um homem de bem, que consegue transmitir no discurso sua sinceridade e seriedade. Por isso, o país aceita a tese de que ele não sabia de nada sobre a corrupção.